quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Philomena, de Stephen Frears. A fé católica versus a Igreja





Philomena, de Stephen Frears. Melhor que uma boa história é uma história bem contada. O filme gira em torno de um jornalista político que caiu em desgraça e perdeu seu emprego prestigioso na BBC, motivo que o leva, em meio à depressão, a aceitar contar a história prosaica de uma mãe irlandesa cujo filho lhe foi tomado das mãos nos anos 50, de dentro de um convento, por freiras severas e inescrupulosas, que o ofereceram para adoção. Trata-se de história real e conhecida, a da compra de bebês irlandeses pobres por ricos norte-americanos. Passado meio século, Philomena não aguenta mais guardar o segredo da perda de seu primeiro filho e quer reencontrá-lo, ou, ao menos, saber algo a seu respeito. Como as freiras lhe negam toda informação, ela busca o apoio do jornalista arrogante e desesperado. Segue-se então uma fina trama, contada como bordado artesanal: nada de grandes surpresas ou grandes acontecimentos, mas cheia de interessantes detalhes que levam a sutis guinadas e reviravoltas na difícil relação entre o jornalista cético e esnobe e a simpática e simplória senhora devota, dois companheiros de viagem mais do que improváveis. O final do filme é uma lição de cristianismo contra os horrores e severidades da igreja católica. E o filme conta ainda com a atuação impecável de Judi Dench: a dor, a saudade, a angústia, a simpatia, a alegria, a simplicidade honesta e, sobretudo, a capacidade de perdoar, tudo isso ganha corpo e vida na atuação desta que é a grande atriz do cinema britânico.

Álbum de família, de John Wells, ou o cadáver exposto de certa família norte-americana





Álbum de Família, de John Wells, a princípio não era o tipo de filme que me entusiasmasse. Mesmo sem tê-lo visto, sabia que se tratava de uma ácida crítica à instituição familiar, mas eu realmente me pergunto: quem, descartando-se os 'inocentes e os ingênuos', hoje em dia ainda tem grandes expectativas quanto ao futuro disso que viemos a conhecer pelo nome de 'família'? É claro que as famílias não desaparecerão, mas parece-me que o modelo que conhecemos está em crise franca e talvez insolúvel. E de fato, ao longo do filme a família é impiedosamente desossada e dissecada com terrível perfeição pelo diretor e, sobretudo, por duas atrizes gigantescas em seus papéis, Meryl Streep, sempre excelente, faça o que fizer, e Julia Roberts, talvez em seu melhor e mais exigente papel. Devo dizer que o filme me surpreendeu positivamente, sobretudo pela virulência sem mesuras com que aborda as mazelas daquela família de Oklahoma, que mesmo guardando evidentes traços sulistas, ainda assim possui características que me parecem representativas de certo modelo familiar norte-americano. A princípio, o filme poderia passar a impressão de certo exagero teatral, tanto mais que é adaptação de peça de teatro, e teatro não é cinema. Mas, de todo modo, é mais do que louvável que o assunto seja tratado sem meias palavras ou meias medidas, sem glamour ou final feliz, características não muito usuais no cinema norte-americano de grande público.Ao fim e ao cabo, penso que o filme não é exatamente exagerado, e sim uma caricatura, embora bastante realista, de um modelo de família que assim se compõe: junte um monte de gente e os divida de maneira rigorosa entre os fortes, inteligentes e de língua viperina, por um lado, e os fracos, perdedores e desprovidos de inteligência e poder retórico, por outro; dê a todos eles muito álcool e outras drogas, sobretudo pílulas e tranquilizantes; acrescente a tudo isso grandes doses de protestantismo, ainda que sem qualquer fervor ou fé verdadeira; ou seja, preserve do protestantismo apenas a tendência a incentivar que todos prestem testemunhos públicos, confessem seus pecados e lancem verdades e vitupérios, uns na cara dos outros, custe o que custar e com a máxima maldade retórica (nós, católicos, embora também aprontemos nossas cenas familiares, preferimos a sujeira um pouco mais bem escondida embaixo do tapete): pronto, você reuniu todos os ingredientes para fazer um caldo grosso e espesso, viscoso como aquela família e sua matriarca, encenada de maneira inesquecível por Streep.  






segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Jovem e Bela, de François Ozon.


Jovem e Bela, de Fançois Ozon, é mais um filme em que o sexo quase explícito é posto em cena de maneira perturbadora, como em Ninfomaníaca, de Lars von Trier. Claro que o elemento perturbador não é a própria exposição do sexo. Quem hoje em dia se chocar com isso vive em não sei qual mundo ou época e melhor faria se deixasse sua hipocrisia de lado. Nos dois filmes, o que impressiona é a total desvinculação entre sexo, prazer, erotismo, fantasia e amor. Se fossem filmes moralistas, Jovem e Bela e Ninfomaníaca não fariam mais que repetir uma desgastada crítica à ruptura contemporânea entre amor e sexo, reiterando um antiquado sermão. Mas não se trata de reprimenda moral, e sim de examinar, sem emitir juízos apressados, uma experiência para a qual talvez ainda não tenhamos nome nem saibamos ao certo quais as suas consequências: a experiência do sexo (desenfreado) empregado como arma de recusa (Bela e Jovem) ou de destruição (Ninfomaníaca) de velhos mitos, como o do amor romântico e sua consequência social, os vínculos da família burguesa. É como se Ozon e von Trier nos oferecessem um diagnóstico social (e não existencial ou singular) para algo que certamente já está ocorrendo em massa: o sexo como antídoto contra formas esclerosadas de vínculo, de relação, de amor, de amizade e de família. Tampouco me parece que estejamos às voltas com os velhos temas da transgressão, do desejo, da busca do prazer pelo prazer ou da crítica libertina aos bons sentimentos, pois isso ainda pressupunha a integridade moral daquilo que se pretendia destruir. E Ozon é absolutamente claro a esse respeito: da família, restam apenas algumas convenções, pequenos ritos, tradições e traições. No entanto, ao que parece o referido experimento destina os experimentadores ao isolamento e à anestesia, à ruptura de toda afetividade. Em termos afetivos, ao longo do filme de Ozon resta apenas alguma cumplicidade entre os irmãos, Isabelle e Victor; e a bela cena em que Isabelle se encontra com a viúva de um antigo cliente, e as duas se limitam a deitar-se em silêncio na cama do hotel, uma ao lado da outra. Os dois filmes mostram que estamos diante de um tremendo dilema: de fato, do velho amor romântico já não resta senão a reiteração mecânica e publicitária, fantasmática, incapaz de seduzir quem quer que desconfie da hipocrisia do romantismo e das teias grudentas do ambiente familiar. Por outro lado, ao usar e abusar do sexo para recusar ou destruir tais vínculos e teias, parece que corremos o risco de cair no vazio mais desesperançado e assustador, um abismo anti-afetivo generalizado. Assim, os dois filmes nos confrontam com a urgente necessidade de reinventar a relação entre sexo, amor, amizade, desejo e comunidade, se é que já não é tarde demais... De todo modo, o assunto é intrigante e pretendo voltar a ele num post mais longo.





domingo, 12 de janeiro de 2014

Curtas: Um corpo que cai, de Hitchcock



Um corpo que cai, Vertigo no original, é um filme vertiginoso: quase nos faz acreditar em possessões espirituais - e o que é o amor senão uma poderosa possessão espiritual? -, enlouquece a razão até o limiar da loucura, mas, ao final, restitui-lhe seus direitos e restaura a ordem racional quase violada. Sim, ao final tudo se explica, mas o preço é verdadeiramente alto. E o pior é que a razão é levada ao limiar de seu esgotamento por obra de um plano macabro da própria razão, única instância capaz de planejar e executar um crime perfeito, mas que falha, ao menos para o personagem de Kim Novak, Madeleine-Carlota-Suzy, por causa das chamadas razões que a própria razão desconhece, as do coração. Um filme sobre o limite mais do que tênue entre razão e loucura, entre razão e paixão. Imperdível para quem ainda está em Curitiba neste verão de 2014, em cópia e cores restauradas!





Curtas: Blue Jasmine, de Woody Allen




Blue Jasmine não é uma comédia de Woody Allen sobre as atribulações de uma milionária nova iorquina que, do dia para a noite, perde o marido e todo o luxo que seu dinheiro podia comprar, tendo que se alojar de favor na casa da irmã pobre que mora na costa oeste dos Estados Unidos. Este é o enredo geral, mas o filme é bem mais complexo e possui diversos ângulos que se complementam: é um drama familiar, pois trata-se do re-encontro entre duas irmãs separadas pelo abismo de classe social; há viés do drama econômico, pois o filme reflete a amarga crise em que mergulhou a primeira economia mundial desde 2008; é também um drama moral sobre a vigarice do capitalismo financeiro neoliberal e sua bancarrota, bem como é um drama moral sobre a futilidade do luxo e da cultura das aparências; é ainda um drama sobre o enlouquecimento profundo em uma sociedade habituada à loucura funcional. Mas Blue Jasmine também pode ser visto como a crônica da reprodução em série de mulheres frágeis e dependentes da figura masculina, afetiva ou economicamente. Visto dessa perspectiva o filme é aterrador e ganha muita realidade, pois todos conhecemos (de perto ou de muito perto) mulheres que muito se assemelham à Jasmine representada à perfeição por Cate Blanchet: instáveis, incapazes de reconhecer seus méritos, incapazes de lutar por tal reconhecimento, prontas a se entregar ao primeiro aventureiro, vítimas de predadores eventuais...A cena final é das mais tristes e angustiantes que Allen já filmou, pois o destino de tais mulheres é (quase) sempre o abandono, a loucura, a perda de voz, a morte em vida.

Curtas: Ninfomaníaca, de Lars von Trier





Esqueça o estardalhaço midiático em torno de Ninfomaníaca, de Lars von Trier. Esqueça as polêmicas destinadas a torná-lo um cult movie ou um dramalhão sobre sexo e culpa cristã. Esqueça as comparações apressadas com Shame, de Steve McQueen, um filme pobre, limitado a contar a história de um viciado sexual. Esqueça o sexo, esqueça também o erotismo, a fantasia, o calor e, sobretudo, esqueça o amor. Esqueça tudo isso ao menos por um momento, pois quando o filme começar você terá muito o que ver e pensar, sua inteligência e sensibilidade serão requisitadas, então se acalme. Ninfomaníaca se inicia no escuro e assim permanece por longos segundos silenciosos, artifício estético que contrasta de maneira paradoxal com o falatório incentivado pelo diretor e pelos produtores comerciais do filme.
Sim, Ninfomaníaca é um filme interessante porque composto de paradoxos. O primeiro e mais importante destes paradoxos é o de que ele é e não é um filme sobre sexo. Claro que há nele inúmeras cenas de relações sexuais, como, aliás, poucos filmes comerciais ousaram fazer até agora. No entanto, a verdadeira ousadia não está no fato de que a jovem Joe, belamente interpretada pela novata Stacy Martin, transe com qualquer um e que tudo  nos seja mostrado em cenas (quase) explícitas. Não, o importante está justamente em que nesta primeira etapa do filme o sexo não seja sinônimo de busca do prazer, não se confunda com a busca de afeto, não seja o elemento central de uma ou muitas relações amorosas.
 


Pelo contrário, o sexo é ali a arma letal com que Joe quer se livrar do amor e de toda relação amorosa possível, assassinando-os. Mas o que começa de maneira vulgar e simplória, como jogo ou competição entre amigas para ver quem consegue ‘fisgar’ mais homens numa viagem de trem, rapidamente assume o estatuto de fim em si mesmo, convertendo-se em vício sexual que mutila a vida de Joe (Charlotte Gainsbourg), resumindo-a a ser pouco mais que a repetição desvairada de atos sexuais desprovidos de sentido.

Para prosseguir com a lista dos paradoxos, Ninfomaníaca é um filme gélido, cortante, nele quase não há luz ou calor. Mas, por outro lado, há nele também muito acolhimento e cuidado, estampados nos papéis masculinos do pai (Christian Slater) de Joe e do enigmático Seligman (Stelan Skarsgaard), que a recolhe em frangalhos do meio da rua. O homem velho e culto, sobre o qual nada se sabe, parece assumir a posição de um psicanalista que ouve as histórias de Joe e se limita a pontuá-las com breves comentários, que parecem pretender auxiliar Joe a se descolar da severidade dos juízos morais que ela dirige contra si mesma, abrindo espaço para a possível descoberta do sentido errático de sua vida. Se pensarmos em Anticristo e Melancolia, esta será a primeira vez que von Trier nos oferece personagens masculinos sábios e afetuosos, distantes do estereótipo do cientista prepotente, autoritário e, ao final, sempre impotente. 
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Para concluir a série dos paradoxos, Ninfomaníaca é um filme deprimente, mas talvez também seja o filme menos dramático de von Trier em muitos anos. Ele chega, inclusive, a nos dar a rara oportunidade de rir, ainda que apenas discretamente e por breves instantes, sobretudo na cena do melodrama seco, interpretada por Uma Thurman.

Finalmente, o filme ainda é capaz de reunir Bach http://youtu.be/X9Dh43kVL1Q, César Franck http://youtu.be/fmPGgvavvRw  e o heavy-metal alemão que abre e encerra a sua primeira metade. http://youtu.be/s2e8HDWameo

Quanto a mim, fiquei bastante curioso para saber como se desenrola a história, que se  interrompe de maneira magistral numa verdadeira aula de cinema. Agora é esperar até o lançamento da segunda parte, prevista para março. 


segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Ainda sobre o filme Tatuagem, de Hilton Lacerda: novas considerações



Filme bom é aquele sobre o qual muito há o que dizer. Assim, volto ao filme Tatuagem, de Hilton Lacerda, comentado em post anterior, que visava chamar a atenção para os temas gerais do filme, indicar possíveis correlações com outras produções cinematográficas recentes e com movimentos políticos de inspiração queer, como a Marcha das Vadias. Agora, gostaria de propor reflexões um pouco mais específicas sobre Tatuagem, e para isso farei alusão a algumas de suas cenas, de modo que o texto que se segue é contra-indicado àqueles que porventura ainda não o tenham assistido.

Como todos sabem, tatuagem é uma inscrição, uma incisão colorida e dolorida que marca a pele, que fere o corpo para exibir uma mensagem ou um símbolo que não mais se apagam, que duram no tempo e assim estabelecem um elo de ligação entre presente, passado e futuro. Por certo, o título do filme faz menção à sequência em que Fininha (Jesuíta Barbosa) se faz tatuar por seus colegas de exército, que lhe desenham um tosco coração contendo em seu interior a letra C, de Clécio (Irandhir Santos), na altura de seu próprio coração, como prova de amor e admiração pelo líder do grupo de teatro por quem ele se apaixonou. Mas essa tatuagem afetiva também exprime de maneira condensada o assunto mesmo de toda a película, que trata justamente de experiências que marcam o corpo de maneira indelével. Em uma palavra, o filme nos mostra como fazer do corpo um instrumento de amor, de erotismo, de beleza e de luta política contra a rigidez dos valores e comportamentos militares que comandaram o país por vinte longos anos, e que ainda hoje teimam em não desaparecer de nossa paradoxal democracia.


Assim, Tatuagem é um filme político, mas sua política não se faz com partidos, estados, eleições, organizações sociais ou disciplinas militares, mas com palavras-de-ordem debochadas, irônicas, corrosivas, que têm o cu como motivo central: o cu como lugar de prazer e de subversão, como princípio estético que orienta a criação teatral, como lugar de diversão a todos garantida, o cu como lugar de um baile mais que profano, pois que profana a ordem vigente, fustigando a censura militar que logo se apressa em proibir tais espetáculos 'imorais'. Uma das cenas mais divertidas e marcantes do filme, encenada duas vezes, mostra os atores e as atrizes do cabaré Chão de Estrelas todos nus, cobertos de purpurina, vistos de costas pelos espectadores, as bundas empinadas e rebolantes, dançando ao som da divertida Polca do Cu. Esta, por sua vez, nos esclarece que o dito cujo não é UM, mas MUITOS, com qualidades, atributos e predicados distintos e variados. Esta cena é precedida pelo prólogo desbocado de Clécio, que explica as virtudes democráticas do órgão que todos temos, e que, talvez, até mesmo ELE o tenha, o cu onisciente e onipresente, amém.



A política de Tatuagem é uma política da vida em comum, da vida comunitária no casarão de Olinda, onde habitam os atores e as atrizes do cabaré popular, como também aconteceu com o grupo carioca Dzi Croquettes, da mesma época e da mesma cepa (ver http://okupacao.blogspot.com.br/2010/12/dzi-croquettes-documentario.html). Tatuagem é uma crônica da vida-artista vivida em comum, é uma crônica de vidas vividas à margem dos conceitos e preconceitos burgueses, crônica cotidiana das vidas livres, alegres, autogestionárias e críticas, vidas cínicas no melhor estilo daquilo que Foucault certa vez denominou como as "posteridades transhistóricas" do cinismo antigo. 





De fato, boa parte do filme transcorre em meio a esta vida em comum, com suas festas malucas, seus trabalhos manuais, os ensaios teatrais, as pequenas diversões na rede embalada por maconha e conversas desconexas sobre o filme Laranja mecânica, então recém-lançado no Rio de Janeiro, as dificuldades econômicas da vida alternativa, bem como a necessidade de inventar uma ordem coletiva não autoritária, compartilhada democraticamente. Afinal, anarquia não é bagunça e uma das cenas mais tocantes mostra Clécio e Paulette entre mal disfarçadas lágrimas, discutindo não apenas a relação afetiva entre os dois, interrompida e transformada pela chegada de Fininha, mas também a desordem mental de Paulette, desde que ele passa a se entregar a um traficante que o está viciando em cocaína, prejudicando assim seu envolvimento com o grupo e seu trabalho como ator. É comovedor ver como Clécio se aproxima de Paulette e o chama à razão da maneira mais delicada e amorosa, mostrando-nos que autoridade não se confunde com autoritarismo e que ordem, engajamento e dedicação tampouco se reduzem à disciplina militar que impera no quartel. 




Um quartel, aliás, saturado de sexualidade e de desejos homossexuais, expressos, porém, sempre de maneira violenta, seja na pegação furtiva, às escondidas, seja na violência verbal e física sob o olhar de todos. De maneira perspicaz e refinada, Hilton Lacerda escapa à contraposição simplista entre a vida-artista e a vida militar, pois mesmo o antro da ordem está permeado pela desordem, já que também ali o cu faz valer seus imperativos. Não é casual que o coração de Fininha seja tatuado pelos companheiros de ofício militar, e que ele próprio se envolva sexualmente com um sargento dentista da corporação, ferindo o coração de Clécio e despertando desconfiança nos outros moradores do casarão: seria um infiltrado? Tampouco é casual que o recruta que por ele é obcecado se empenhe com tanto vigor na repressão ao último espetáculo do Chão de Estrelas, aquele do qual também participa o soldado Fininha, empinando em público seu cu tão disputado.


Mas Tatuagem, sendo tudo isto (e muito mais), é também e sobretudo um filme sobre o amor entre dois homens. A esse respeito vemos ali exemplos primorosos de como o amor, o erotismo e o próprio sexo ainda geram fortes efeitos político-afetivos, capazes de desestabilizar padrões bem estabelecidos de comportamento. São lindas as cenas de flerte no cabaré, na noite do primeiro encontro, particularmente quando Clécio, vestido como mulher e com voz feminina, porém portando barba, interpreta a magnífica canção de Caetano Veloso, "Esse cara", olhando fixamente nos  olhos de Fininha. Seu gestual, sua maneira de olhar e revirar os olhos, a combinação das roupas femininas e dos pêlos masculinos, tudo isso conspira para nos fazer lembrar dos Dzi Croquettes, de mais a mais, já explicitamente homenageados pelo codinome 'Paulette'.



 A paquera entre Clécio e Fininha evolui para o flerte decidido na cena em que os dois dançam romanticamente ao som de "A noite do meu bem", na voz de Dolores Duran, outro primor de erotismo, raras vezes visto no cinema nacional ou internacional. É maravilhoso acompanhar o desenrolar da cena, com Clécio empunhando a mão de Fininha, ajustando-se a ele para conduzi-lo na dança, moldando com engenho seu corpo ao dele, enquanto a velha gravação do LP entoa: "Quero ternura de mãos se encontrando..." 






Muito naturalmente, a sequência se conclui com uma magnífica trepada, coreografada sob medida para não deixar qualquer dúvida de que o que vemos ali é o amor e o sexo entre dois homens. Há ainda as lindas cenas do namoro no mar, entre beijos salgados e carícias que atiçam corpos reluzentes sob o sol dourado do Recife. Se alguém se recordar de cenas mais bonitas e eróticas no cinema brasileiro, que fale agora...O brilho solar dessas cenas só é igualado pelos beijos de Emma e Adèle em Azul é a cor mais quente.http://okupacao.blogspot.com.br/2013/12/normal.html


Por fim, retorno a um tema que me parece decisivo e ao qual já havia feito referência em post anterior: a sutil comunicação temporal entre passado, presente e futuro que o filme parece estabelecer. Tatuagem é um filme sobre nosso passado, sua história se desenrola em 1978, quando a longa ditadura militar finalmente entrava em seu período de distensão, prenunciando seu derradeiro esgotamento. Essa comunicação temporal é fundamental no filme, que não casualmente tem por chamada a frase: "No futuro, o amor e a liberdade serão como num filme". Na narrativa de Lacerda, essa alusão ao futuro se estabelece pelo recurso ao filho quase-adolescente de Deusa e Clécio, bem como pelo filme dentro do filme, concebido como mensagem lançada ao mar dentro de uma garrafa que hoje nos chega às mãos. 



Ao longo do filme a criança aparece pouco, mas todas as suas aparições são significativas; numa delas, Clécio reclama com Deusa por ela ter levado o menino ao cabaré, que ironiza o pai enquanto a mãe sentencia: "Clécio, não existe lugar bom ou ruim para criança, o que existe é educação boa ou ruim." Basta essa frase para que caiam por terra todos os preconceitos relativos à suposta boa educação das crianças. E de fato, o menino convive aberta e tranquilamente com as bichas, os sapatões, o amor livre e as drogas, e sua expressão contínua de confiança e felicidade estampada no rosto é quase uma prova de que haverá de haver mais e melhor vida no futuro.



Quanto ao filme dentro do filme, creio que ele mereceria longas considerações, mas falta-me cultura cinematográfica para tanto. À primeira vista não pareceria haver nada muito especial ali, nada mais, talvez, que um apanhado de imagens sem nexo, pontuadas por algumas poucas considerações em off do cineasta-filósofo, que as anuncia como imagens destinadas ao futuro. São imagens oníricas, de forte poder simbólico, talvez sejam até mesmo imagens totêmicas ou mitológicas para nós, brasileiros; seja como for, são imagens emblemáticas, que grudam na nossa memória e provocam nossa imaginação. A despeito de desconexas, elas parecem possuir um fio condutor secreto: para mim, ao menos, era como se Lacerda pretendesse amarrar o cinema de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, mais o cinema italiano de Pasolini e de Felini, ao próprio cinema que ele agora vem nos oferecer, no começo do século XXI. Vemos nessas imagens todo seu apego ao universo popular do circo mambembe e do teatro de rua, mas tais imagens também contêm outras referências temporais. Simultaneamente, elas fazem referência a um passado brasileiro tingido de cores e traços épico-mitológicos, com seus índios e índias, sambistas, bichas, sapatões e travestis, ao passo em que também aludem ao futuro de uma civilização tecnológica periférica, que tenta se arrumar com o pouco de que dispõe. Penso, em particular, nas imagens do astronauta de lata e bugigangas, que caminha desorientado em meio a bananeiras e índias que o veneram espantadas. 



O filme dentro do filme tem a nós, seus espectadores, como destinatários; é a nós, que vivemos em outra época, que tais imagens são endereçadas, é a nós que elas procuram dizer algo. Mas o quê? É difícil dizer. Talvez tais imagens sejam a síntese utópica de um país (im)possível. São imagens captadas pela lente filosófica e delirante de Lacerda, um cineasta que sabe que a força do cinema não reside apenas na coesão da história narrada, mas, sobretudo, nas imagens mesmas, com seus acenos para novas e velhas possibilidades existenciais, sempre dotadas de cor local e historicidade. 


PS: Acabo de descobrir que o cineasta-filósofo de Tatuagem está inspirado no cineasta-filósofo Jomard Muniz de Britto, que documentou em super-8 algumas atividades do grupo teatral Vivencial Diversiones, do Recife, ao qual alude o Cabaré Chão de Estrelas, do filme de Lacerda. Vejam o vídeo e escutem a bela, enigmática e instigante canção de Caetano Veloso, "Pelos Olhos" http://youtu.be/JGaooahdba8

Mais informação sobre o filme Tatuagem em: 
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/01/1393907-exposicao-no-rio-reve-producao-experimental-de-pernambuco.shtml

   

sábado, 4 de janeiro de 2014

Tatuagem e o novo cinema brasileiro




Como falar de Tatuagem, para mim (e para muita gente mais) o melhor filme brasileiro de 2013? É difícil até mesmo caracterizar a dificuldade em falar dele. E no entanto o filme não é hermético, não é um filme de intelectuais para intelectuais, não contém grandes ousadias narrativas ou estéticas, embora escape ao padrão da atual narrativa cinematográfica nacional ou estrangeira, sempre muito linear e didático-explicativa. 

O que torna difícil escrever sobre ele é a sutileza com que Hilton Lacerda, talvez o melhor roteirista da atualidade, fabricou sua intricada tessitura narrativa, intercalando acontecimentos de natureza e escala diversas, os quais se contrapõem e se misturam sem se superpor ou se anular. De fato, o filme se constrói em torno à contraposição entre a vida no exército (em pleno regime militar) e o teatro popular, o cabaré Chão de Estrelas; entre a vida comunitária na capital Recife e a modorra da vida familiar no interior profundo de Pernambuco; entre o amor e o sexo heterossexuais e o amor e o sexo homossexuais; entre a ordem disciplinar e o deboche crítico e criativo; entre o presente narrado, o ano de 1978, e o futuro ao qual a criança e o filme dentro do filme fazem alusão, qual mensagem lançada ao mar em garrafa que hoje nos chega, em pleno século 21.


Muitos aspectos mereceriam comentário detido, como a trilha sonora produzida pelo DJ Dolores, cheia de novos achados (Johnny Hooker) e releituras, como a bela canção de Caetano Veloso, “Esse cara”, interpretada pelo melhor ator do cinema nacional nos dias de hoje, Irandhir Santos. Pense nos melhores filmes nacionais recentes e você o encontrará em mais da metade deles...




Há também as interpretações primorosas de Jesuíta Barbosa, Rodrigo Garcia e Sylvia Prado, todos de um desprendimento e de uma veracidade exemplares; há o colorido solar de um filme cheio de esperança boêmia e alegria praieira; e, sobretudo, há as imagens filmadas em super-8 pelo filósofo-cineasta (Silvio Restiffe), imagens de caráter totêmico e onírico

Elas condensam em cor, luz e ritmo as utopias de um país (im)possível, amarrando o passado do cinema (Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Felini e Pasolini) às suas possibilidades contemporâneas. 
Dentre tanta coisa positiva e interessante a se comentar e discutir, penso que a comunicação sutil entre passado e presente é um dos traços que melhor respondem pelo sucesso da mágica bem realizada por Lacerda. Este me parece ser também o traço que faz de Tatuagem um filme-irmão de Febre do rato, de Claudio Assis, com roteiro do mesmo Hilton Lacerda, bem como um filme irmanado ao documentário de Tatiana Issa, Dzi Croquetteshttp://okupacao.blogspot.com.br/2010/12/dzi-croquettes-documentario.html


Tatuagem fala do passado e de experiências estéticas, políticas e afetivas que se perderam no tempo, mas que cada vez mais começam a se tornar audíveis, compreensíveis e significativas em nosso presente. Dentre os elementos que permitiriam estabelecer esses elos frágeis entre passado e presente nomeio a vida comunitária e marginal, quase diria, inspirado em Foucault, a vida cínica e vivida à margem das formas hegemônicas do viver, amar e transar. Motivo pelo qual nessa vida ‘outra’ e em comum, o sexo, o corpo e o deboche são fios condutores que não apenas amarram como aproximam Tatuagem, Dzi Croquettes e Febre do rato

Ora, como não reconhecer semelhanças e afinidades entre estes filmes estético-políticos e manifestações políticas de inspiração queer de nosso tempo como a Marcha das Vadias, orientada pelos mesmos elementos criativos, contestadores e críticos, aggiornados para nosso tempo? (Sobre a Marcha das Vadias: http://okupacao.blogspot.com.br/2013/07/marcha-das-vadias-2013-ironia-como.htmlhttp://okupacao.blogspot.com.br/2012/07/marcha-das-vadias-em-curitiba-2012.html);http://okupacao.blogspot.com.br/2013/07/feminismo-vadio-publicado-em-12072013.html

Ontem como hoje, o deboche cínico, a criatividade espontânea e instantânea, a contestação dos padrões normativos de gênero, sexo e etnia, tudo isso amarra presente e passado, anunciando promessas de futuro. E o cinema brasileiro, quando reflete sobre sua própria história e sobre a história brasileira continua a nos oferecer o que temos de melhor. 

Por tudo isso, O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, há de ser mencionado como outra excelente produção cinematográfica do ano que acaba de acabar. Mas para falar deste filme que investiga a reprodução de nossa estagnação histórica, que faz com que o que de pior tivemos em nosso passado se congele e demore muito a passar, já seria preciso começar um novo post...


De todo modo, as ideias aqui apresentadas não passam de ensaio visando preparar o caminho para reflexões mais apuradas e alongadas sobre o novo cinema brasileiro, pois muito ainda há que pensar a respeito dos filmes que mencionei aqui, para não falar naqueles que ficaram de fora...



sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Balanço político de um ano singular: desde junho, algo de novo apareceu na política brasileira



Compreender o recente ciclo de manifestações políticas iniciadas em junho de 2013 é tarefa por demais complexa e, por certo, ainda precisaremos de muito mais tempo e de pesquisas variadas para poder entendê-las melhor. Por hora, apresento apenas o esboço de um balanço reflexivo, sem qualquer pretensão exaustiva ou conclusiva. De fato, tento apenas  apreender e sintetizar algo que por enquanto ainda me parece inabarcável, isto é, o significado político daquelas manifestações; tento, enfim, dar forma àquilo que elas exigiram de meu pensamento até aqui. 


Ao menos o enredo geral é bem conhecido: as vitórias conquistadas pelo Movimento Passe Livre em São Paulo e Rio de Janeiro detonaram imediatamente, em todo o país, um intenso desejo de manifestação política, de ocupação coletiva de espaços urbanos antes destinados à circulação viária, um forte desejo de expressar a própria voz, uma clara vontade de aparecer em público e reivindicar algo, fosse o que fosse, de maneira performática, teatral e mesmo estridente. 



"Não é apenas por 0.20!", gritaram milhares de manifestantes. Claro que não: abaixar a tarifa é apenas o primeiro passo no âmbito de transformações muito mais amplas e profundas, que devem transformar nossa concepção do transporte urbano, redefinir o direito de ir e vir e o significado do viver nas cidades, repensar nosso modelo de desenvolvimento econômico e por em ação medidas que diminuam a distância entre ricos e pobres. 

Sabemos também qual foi a reação política e policial que se seguiu às primeiras manifestações, bem como conhecemos suas consequências mais imediatas. Foi no contexto do aumento da violência policial contra os manifestantes que as próprias manifestações começaram a ganhar contornos cada vez mais violentos, sobretudo com a entrada em cena, ao menos do ponto de vista da grande mídia, dos chamados Black Blocks, taxados indiscriminadamente como vândalos, baderneiros, criminosos e até mesmo como terroristas por um vetusto senador da República, pasmem vocês... 

Desde que as manifestações de Junho começaram o cenário político foi se tornando confuso e nebuloso, abarcando posições contrapostas, porém contíguas e por vezes quase assemelhadas entre si. Muitos incentivavam a participação nas manifestações, mas os chamados vinham desde partidos e movimentos sociais situados à esquerda do PT, passavam por associações e agremiações politicamente anódinas, até chegar a setores desta mesma sociedade civil claramente colocados à direita do espectro ideológico nacional, dentre os quais a  Revista VEJA e as associações contra a Corrupção, estes claramente interessados em se aproveitar do momento político para desgastar o governo federal e tentar liquidar a hegemonia petista conquistada desde 2002. 


Ainda com relação à grande mídia, sobretudo nos jornais televisionados pertencentes à rede Globo, mas também nos grandes jornais impressos e on-line, como a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo, observava-se uma oscilação entre a criminalização indiscriminada dos manifestantes e o exercício praticamente impossível de discernir entre bons manifestantes e os chamados vândalos, epíteto repetido ad nauseam e que bem ilustra o quanto certas questões políticas continuam sendo tratadas como questões policiais. O mesmo cenário confuso e polarizado também se reproduzia entre os intelectuais: dentre aqueles próximos ou estreitamente ligados ao PT vicejava o forte temor de que as manifestações derrubariam a popularidade da Presidente Dilma, algo que efetivamente aconteceu, embora por curto período de tempo. Também houve aqueles que apoiaram incondicionalmente tais manifestações, concebendo-as como clara expressão de um repúdio indistinto a todas as instituições representativas, brandindo palavras-de-ordem como: “contra tudo que está aí!”, “contra os partidos!”, “sem partidos!”. 



Entre uns e outros houve também aqueles que, como eu, colocaram-se no meio do fogo cruzado e, desviando-se das balas perdidas, a muito custo tentaram pensar o que estava acontecendo sem se comprometer imediata e integralmente, seja com as concepções petistas, seja com as concepções anti-petistas, fossem elas vindas da direita ou da esquerda. Posição difícil, talvez impossível, facilmente rotulável como ambígua ou indecisa, mas que eu gostaria de caracterizar como uma posição 'crítica', se recordarmos o sentido que Foucault atribuiu à crítica, ou seja, a tarefa de tornar difíceis os gestos fáceis demais... 
Assim, ao reconstruir este cenário político conturbado, tento propor reflexões que escapem à polarização simplista. Com relação ao fenômeno da violência que começou a brotar do interior das manifestações, por exemplo, estou entre aqueles que nem a glorificam, nem tampouco com ela se escandalizam. Quem quer que acompanhe manifestações políticas no mundo todo sabe como é raro que a violência não faça aí sua aparição. Pensemos, por exemplo, nas rebeliões dos subúrbios de Paris, onde mais de 300 carros são sumariamente incendiados em momentos de revolta juvenil. Estes surtos de violência se devem, tanto no Brasil como no exterior, muitas vezes à brutal repressão policial, não apenas aquela que se volta contra os próprios manifestantes, mas também e sobretudo aquela violência policial que 'vandaliza' os pobres quotidianamente. 



Seja como for, uma coisa me parece certa: se a violência deu cor mais forte e nítida a movimentos políticos predominantemente pacíficos, tornando suas demandas simbolicamente mais evidentes, também me parece que as vitórias obtidas pelo MPL não se deveram à violência, mas ao poder gerado por seus atos e palavras. 

Com relação à chamada crise de representatividade, certamente um dos motivos do ciclo das novas manifestações nacionais, embora de modo algum seu único ou preponderante fator, penso que é fundamental para o fortalecimento da nossa democracia que haja movimentos políticos não vinculados a partidos, como é o caso do MPL e de tantos outros movimentos sociais mais ou menos organizados, mais ou menos institucionalizados, mais ou menos independentes da estrutura estatal. É essencial pensar e exercitar novas formas de organização política e institucional, para além do monopólio dos partidos políticos, das instâncias representativas formais e mesmo dos movimentos sociais e demais associações da sociedade civil já bem consolidados. Por outro lado, contudo, recusar apressadamente a "forma-partido" me parece ingênuo ou oportunista, e penso que atualmente isto só interessaria mesmo à direita mais conservadora, que muito teria a lucrar com os resultados imediatos desta suposta supressão da democracia representativa e institucionalizada em eleições.
  
De meu ponto de vista, portanto, tratava-se de aprender a conduzir o pensamento pela corda-bamba, sem recusar genericamente "tudo o que está aí", mas sem tampouco fechar os olhos para o impressionante potencial político daquilo que passará para os livros de história como as “Jornadas de Junho de 2013". É fundamental pensar e exercer uma política de esquerda para além dos partidos de esquerda e dos limites atuais de nossa representação política, considerando atentamente o poder imprevisível das manifestações plurais das ruas naquilo que elas têm de específico: são manifestações sem líderes, auto-organizadas e com diversas pautas, nem sempre unificadas, mas sempre muito criativas, irônicas e afetivas, pois capazes de provocar velhas formas de vida e instigar novas experiências políticas, sociais e estéticas nas cidades. Desejo de urbis, desejo de polis, desejo de apropriação de espaços comuns, eis como eu definiria (até agora) o sentido das novas manifestações políticas que irromperam na cena política nacional desde junho.



Ninguém sabe qual será a história deste ciclo de manifestações políticas urbanas que ainda permanecem abertas; ninguém sabe como tais manifestações evoluirão ou quando se encerrarão, pois a fagulha certamente permanece acesa e creio que não se apagará antes do final da Copa de 2014, que desde já se anuncia como momento-crítico, pois novas manifestações acontecerão num clima ainda mais fortemente militarizado e controlado. É como vaticinava a publicidade, com sua incrível capacidade para apreender signos dispersos: "Imagine na Copa!" 

De todo modo, é urgente começar a pensar sem recorrer exclusivamente a categorias teóricas que estão sendo postas em questão pelas próprias manifestações. De nada contribui esbravejar e brandir velhas noções como: “as mídias sociais são irrelevantes para as novas manifestações!”; “as manifestações não podem dar em nada, pois não têm líderes!”; “se não estamos numa crise revolucionária, então a violência dos manifestantes só pode ser fascista!”; “os manifestantes são um bando de jovens romântico-niilistas!” "A culpa é da classe média reacionária, são os malditos coxinhas", etc. etc. A seguirmos nessa toada, o mais provável é nos tornarmos completamente irrelevantes enquanto intelectuais comprometidos com a transformação social e política do Brasil. Algo muito grave, pois o sentido político destes novos acontecimentos ainda será disputado palmo a palmo pelos setores mais conservadores do país. 



Em minha opinião, até o momento o saldo positivo mais concreto deste novo ciclo de manifestações é o de que ativistas e militantes mais ou menos organizados, secundados por uma maré humana desorganizada e quase sem qualquer participação política prévia, puseram na ordem do dia, e de maneira irrevogável, três pautas políticas cruciais: a pauta da democratização do transporte urbano; a pauta da democratização e da desmilitarização da polícia militar; bem como a pauta da democratização de nossa mídia altamente monopolizada, desregulamentada e reacionária. 

Há quem considere tudo isso como demandas exageradas ou desprovidas de foco político viável, enxergando nas novas manifestações políticas apenas o dano que podem causar a nosso frágil processo democrático. Para outros tantos, tudo o que aconteceu (e que ainda está por acontecer) ainda é e será muito pouco, muito pequeno diante da gravidade de nossa crise política. De minha parte, penso que tais acontecimentos constituem um passo decisivo, fundamental até, para o desenho de uma outra democracia, uma democracia do porvir, mais atenta aos anseios e necessidades sociais e de participação política popular. E se isto for verdade, algo que apenas o tempo poderá dizer, estaremos em dívida perpétua para com todos aqueles manifestantes que foram para as ruas e assim começaram a contribuir para o longo processo de democratização da nossa democracia, o qual há de reduzir seus traços autoritários e paradoxais.