sábado, 4 de dezembro de 2010

Dzi Croquettes - documentário

Assisti duas vezes ao belo documentário de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, Dzi Croquettes. O filme narra a trajetória do histórico grupo teatral que revolucionou a cena cultural paulista, carioca e parisiense a partir de meados dos anos 70. Desde os anos 90, quando a Aids e alguns assassinatos não resolvidos deram cabo à vida de vários integrantes do grupo, eles estavam praticamente esquecidos. O documentário recupera a memória do grupo e põe novamente em cena a transgressão de gênero que era central em suas apresentações. Por estes dois motivos, o documentário é mais do que oportuno e chega em boa hora.
Em meio ao período mais sombrio da ditadura brasileira, no começo dos anos 70, um grupo de jovens talentosos, inconformistas e iconoclastas se reúne e monta um espetáculo no qual dançam, cantam e interpretam... todos vestidos de mulher, hiper-maquiados (purpurina e imensos cílios postiços, batom, blush e o que mais der), quase nus, porém sem esconder que são homens, musculosos, peludos, barbados. A estética ambígua dos Dzi Croquettes valeu-se do humor e do talento para promover uma crítica radical dos valores dominantes, embaralhando a identidade de gênero e promovendo um carnaval anti-repressivo que despertou a ira dos censores e que ainda tem muito a nos ensinar.
Em pouco tempo os Dzi Croquettes chamaram a atenção do meio cultural carioca, sobretudo depois que o coreógrafo norte-americano Lennie Dale se incorporou à trupe e lhe impôs um profissionalismo e um nível de qualidade jamais vistos até então no Brasil. O filme mescla as apresentações do grupo no Brasil e em Paris ao depoimento de músicos, atores e diretores de teatro conhecidos de todos nós, como Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Marília Pera, Beth Faria, Miguel Falabella, José Possi Neto, entre outros. Apenas para dar uma ideia da importância dos Dzi Croquettes, Secos e Molhados e As frenéticas não teriam existido sem eles, sem falar que Liza Minelli tornou-se a embaixatriz do grupo no exterior.

Sensuais, debochados, críticos, hilários, talentosos, criativos, geniais, apaixonados, experimentais... Os adjetivos poderiam ser multiplicados com facilidade, mas nada se compara a vê-los em cena: seus corpos magros e flexíveis, as coreografias impressionantes de Lennie Dale, a capacidade de extrair o luxo do lixo, o humor desbocado, a entrega total à arte e à vida comunitária, o amor livre e exagerado, tudo isso salta aos olhos do espectador e faz pensar num tempo não tão distante, porém já muito longínquo de nossos dias.

De algum modo eu sabia de sua existência, mas nunca os havia visto em cena. Quando fiz Ciências Sociais na Unicamp, nos anos 80, ainda havia algum rumor difuso a respeito do grupo. Seus trejeitos, suas expressões antológicas - "Tá boa, santa?"; "Eu, hein?"; "Sou tiete!" - ainda eram presenças vivas e se faziam acompanhar do deboche sarcástico em relação ao modelo de identidade sexual binário, homem-mulher. Não era raro que amigos se cumprimentassem com 'selinhos' na boca, que usassem batom, que promovessem explicitamente a confusão e a ambiguidade de gênero. Fiz parte de um DCE anárquico que enchia assembléias porque provocava a curiosidade dos alunos: 'passávamos' em sala de aula maquiados, assim como maquiados desafiávamos a ira do interventor malufista, o então reitor José Aristodemo Pinotti. Tudo isso ainda lembrava o espírito dos Dzi Croquettes, embora eu não soubesse quase nada a seu respeito então.
Os anos 90 puseram fim a tudo aquilo. A ascensão mundial do neoliberalismo, aqui revestido de'social-democracia' à brasileira, mais o horror da Aids, silenciaram aquele experimentalismo que não reconhecia fronteiras entre arte, cultura, política e questões de gênero. Tudo era uma coisa só e o que nos importava era transgredir as fronteiras. Muito possivelmente, aquele ímpeto experimental terá desaparecido para sempre de nosso presente. Somos demasiado organizados até mesmo em nossas loucuras, não casualmente experimentadas como boas neuroses do cotidiano.


Para mim, assistir às loucas performances dos Dzi Croquettes foi como reviver um passado perdido. Mas o filme promove algo mais que nostalgia e é por isso que ele me parece tão bem-vindo. Explico-me.


Pela primeira vez na história temos uma mulher presidenta, em cujo discurso de vitória se acusa a desigualdade entre homens e mulheres logo de saída, como problema a ser superado. Cada vez mais os movimentos de minorias conquistam visibilidade, despertando, inclusive, um aumento dos ataques por parte de todos os reacionários que se vêem ameaçados com as transformações no âmbito dos direitos e da cultura. A discussão em torno da legalização do aborto começa a amadurecer. Em suma, cada vez mais parece que o cenário político brasileiro será invadido pela temática da inclusão de novos direitos e novos 'sujeitos' políticos. Não foi por acaso que a campanha eleitoral assumiu colorações tão quentes e polêmicas, assunto ao qual pretendo dedicar outro texto.
De todo modo, parece-me que a política nacional entra agora em nova fase e as fronteiras entre direita e esquerda começam a se deslocar e se definir em torno àqueles temas. Nesse contexto, a exibição do documentário sobre os Dzi Croquettes é mais do que oportuna, é um gesto político poderoso, pois mostra que muitas coisas podem ser diferentes do que hoje são, pois, inclusive, assim já o foram antes.
Apenas uma nota preocupante. Nas duas vezes em que fui ao cinema a audiência não chegava a 10 pessoas. Deve haver algo muito errado nisso, pois o filme foi premiado em festivais nacionais importantes, como o do Rio de Janeiro, e ganhou certa notoriedade nacional. Será que Curitiba ainda não está preparada para o radicalismo estético e político dos Dzi Croquettes?

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A Educação e sua crise

Os “50 mangos” ou o grande negócio da educação

Publicado em 26/08/2010 | MARIA RITA DE ASSIS CÉSAR

Podemos dizer que os alunos vão mal em matemática porque os professores deles não sabem mais matemática, pois não aprenderam muita coisa nos seus cursos de bacharelado e de licenciatura

A notícia sobre o pagamento dos R$ 50 para que alunos assistam às aulas de reforço de matemática na Rede Estadual de Ensino de São Paulo produziu diferentes reações por parte de educadores. Nos jornais algumas reações de especialistas foram ouvidas: da indignada reprovação à medida até a sua aprovação, dizendo-se que seria um bom incentivo para o comparecimento ao reforço escolar. As notícias me fazem lembrar uma decadente Aracy de Almeida em programa de calouros; depois de ouvir uma interpretação horrorosa de algum sucesso do momento, ela dizia: “vai 50 mangos pro rapaz”.

O fato é que a Secretaria da Educação do estado de São Paulo prometeu que iniciaria a medida com 1.200 alunos do 6.º e 7.º anos, os quais, ao comparecerem às aulas de reforço, ganhariam até 50 reais de recompensa. Como afirmou o atual governador de São Paulo, Alberto Goldman (PSDB), o “vale-presente” iria diretamente para o estudante e não para a sua família. Certamente, uma alusão crítica ou “melhorada” ao projeto federal do Bolsa Família, que tem também o objetivo de convencer as famílias pobres da importância da escolarização de crianças e jovens. Embora as reações não tenham suplantado o exíguo espectro da aprovação/reprovação, dada a polêmica causada, a medida foi suspensa no momento.

Projeto de algum gênio ou derrocada absoluta da educação? Nem uma coisa nem outra, ou as duas coisas e ainda outras... O projeto foi pensado e planejado pela Secretaria de Educação de São Paulo, sob o comando do secretário Paulo Renato Souza, em razão dos resultados pífios dos alunos de São Paulo diante das avaliações institucionais (Prova Brasil, Provinha Brasil e outras pirotecnias contemporâneas). Com elas foi desvelado o grande segredo (que todos já sabiam) – “Joãozinho não sabe a raiz quadrada de 9”. Será que resta a nós, experts da área, apenas dizermos se somos contra ou a favor dos “50 mangos” pra meninada? Creio que não. Temos de olhar para isso como sintoma. Não como sintoma de alguma coisa que vai mal, mas como sintoma de alguma coisa que vai muito bem obrigado. A educação no Brasil é um sucesso como fábrica do fracasso, pois é o fracasso que faz o “negócio” da educação girar, inclusive, com os “50 mangos” para os alunos.

Pensemos o tema por outros caminhos. Ao contrário de formarmos bem nossos professores nas universidades, agora já não temos nem mesmo vergonha de dizer que não os formamos mais, que os cursos de graduação com suas licenciaturas são apenas um primeiro momento, antes do início da roda-vida de especializações, aperfeiçoamentos, formação continuada, cursos disso e daquilo, que movem um rentável mercado educacional não somente nas universidades privadas, mas também nas públicas. Bem, podemos dizer que os alunos vão mal em matemática porque os professores deles não sabem mais matemática, pois não aprenderam muita coisa nos seus cursos de bacharelado e de licenciatura, embora saibam tudo sobre trans, intra, supradisciplinaridade, inteligências múltiplas, motivação, afeto, olfato e qualquer outra bobagem de ocasião. Culpa dos professores que se desviaram de sua função? Não, culpa da máquina que faz um negócio vazio de conteúdo e cheio de verbas e recompensas girar de forma bem azeitada.

O negócio educacional vai dos R$ 50 para estudantes do ensino fundamental até bolsas mensais de um pouco mais de R$ 1 mil para professores das universidades públicas que, empobrecidos com seus salários, veem a possibilidade de quitar a dívida do cheque especial. E assim as escolas não ensinam seus alunos e as universidades não formam futuros professores para que a educação continue a ser uma fábrica de fracassos de sucesso absoluto. Os alunos não sabem matemática por que seus professores não os motivam a aprender? Os métodos empregados são ultrapassados? Qual seria a fórmula para que esses jovens aprendam matemática? Novos métodos? Novas pedagogias? A última “descoberta” sobre o funcionamento da inteligência, publicada em alguma revista de caráter duvidoso? Nada disso. Faltam políticas efetivas que atuem na formação dos professores nas universidades. Para aquele professores que se encontram no exercício da profissão, faz falta que sejam bem pagos, que tenham acesso à cultura, à bibliotecas, e que retornem às universidades, frequentando os cursos já existentes, os grupos de pesquisa, além das atividades do cotidiano da universidade, para que ali tenham contato com a produção do conhecimento na sua área de ensino, sem que ninguém seja desviado das suas tarefas e funções. É muito simples, mas não gera lucro e não têm dividendos, sem falar que emperra a máquina que faz o negócio da educação girar com sucesso, fazendo os “50 mangos” irem para o lugar certo.

Maria Rita de Assis César, doutora em Educação, é professora do Departamento de Teoria e Prática de Ensino do Setor de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR. Coordenadora do Laboratório de Investigação sobre Corpo, Gênero, Subjetividade e Educação e Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Sobre os 50 anos da pílula anti-concepcional

Maria Rita César: “Maternidade é uma questão de Estado”
Por: Graziela Wolfart e Márcia Junges, 07/06/2010

IHU On-Line - Ser mãe apenas quando se realmente quer é uma possibilidade oferecida pela pílula. O que isso significa para a mulher do século XXI em termos afetivos, sociais, políticos e sexuais?

Maria Rita César - A maternidade precisa ser analisada historicamente, assim como os controles sobre o corpo feminino. A pergunta que poderia ser colocada é a respeito da historicidade da maternidade como um destino biológico ou natural. Desse modo, a maternidade ou destino maternal da mulher precisa ser problematizada a partir de transformações históricas que, desde o final do século XVIII, “inventaram” o papel da maternidade para a mulher. Todavia, a indagação fundamental deveria ser em relação aos inúmeros saberes femininos utilizados por mulheres e para as mulheres sobre como evitar e/ou interromper a gravidez antes do século XIX, isto é, antes do corpo da mulher ser tomado pela ciência médica, um saber masculino. Desse modo, vários séculos antes da pílula anticonceptiva ser criada, havia saberes que desapareceram e/ou permaneceram nas margens, isto é, saberes que existiram como contrapoderes. Pensemos que, antes do advento da pílula, as mulheres evitavam a gravidez e abortavam. Assim, a história do aborto e da contracepção é uma história fundamental ainda por ser realizada. Antes de analisarmos e saudarmos o advento da pílula como libertação feminina, precisamos lembrar que a pílula é também produto dos processos de desapropriação do corpo feminino em nome da ciência médica, ou da medicalização do corpo feminino. Se observarmos com cuidado, veremos a apropriação do corpo feminino pelo poder-saber médico em algum momento do século XIX e o controle da concepção como uma questão médico-Estatal. Lembremos do caso brasileiro das campanhas de esterilização em massa das mulheres pobres nos anos 70. Desse ponto de vista, não é a pílula que representa a liberdade da mulher; ao contrário, a liberdade trazida pela pílula advém da apropriação que as mulheres realizaram desse artefato de governo do corpo feminino (a pílula), subvertendo-o em favor de sua própria liberdade sexual. Lembremos que, até algumas décadas atrás, para uma jovem solteira comprar uma cartela significava um périplo. Hoje, as questões para a mulher contemporânea poderiam ser relativas à apropriação do seu corpo, isto é, à necessidade de se discutir contracepção e aborto a partir dessa mesma apropriação, ou seja, a partir de uma pauta feminista. Aí sim estaríamos tratando de uma conquista social, política e sexual.

IHU On-Line - Que modificações na maternidade aconteceram em função do seu uso?

Maria Rita César - Como respondi logo acima, a maternidade é a mais eficiente invenção do poder médico para o governo dos corpos das mulheres. Maternidade é uma questão de Estado. Lembremos que, nos regimes totalitários, a maternidade foi sempre exaltada como fonte inesgotável de vidas sadias e patriotas. Lembremos também que, nas guerras, o estupro é sempre uma arma utilizada. Desde a sua invenção, a crença no mito da maternidade construiu as sociedades modernas e produziu subjetividades. Mulheres que não conseguem engravidar se submetem a tratamentos brutais, caros e danosos à saúde do corpo, para realizarem o seu “destino”. No mundo contemporâneo, a maternidade segue soberana. As questões colocadas dizem respeito à possibilidade de conciliação entre trabalho e maternidade, produzindo muita culpa e sofrimento. E as coisas param por aqui. Não se interroga por que em um mundo tão “maternalizado” aponta-se como um problema a maternidade de adolescentes, em especial para as meninas pobres. Então, as mulheres não precisam ser mães? Não seria essa a lição que as meninas aprendem desde os primeiros anos de vida, embalando bonequinhas e empurrando carrinhos de bebê? Ocorre que os dispositivos de controle agem paradoxalmente, reafirmando o lugar, destino e felicidade feminina, ao mesmo tempo em que este lugar é negado para as mulheres jovens e pobres, porque a mesma maternidade tão saudada e ensinada com esmero, na periferia do mundo, será a reprodução da miséria. O problema a ser indagado não é a reprodução de jovens pobres, mas sim as lições maternais que são ensinadas, independentemente da classe social.

IHU On-Line - De que maneira podemos associar o conceito de biopoder com a questão da revolução social e cultural provocada pela pílula?

Maria Rita César - Podemos dizer que a pílula contraceptiva é produto do biopoder. O que significa isso? Se tomarmos o pressuposto de que a medicalização do corpo feminino, isto é, esse processo discursivo e institucional que produz enunciados sobre saúde e bem-estar, realiza exames e previne doenças, e, sobretudo, toma o corpo feminino como um corpo reprodutivo, desenhando políticas públicas para o controle desse potencial de reprodução, estaremos sim falando de biopolítica. Como eu disse anteriormente, a pílula contraceptiva foi desenhada para que houvesse a possibilidade mais efetiva do controle do potencial reprodutivo feminino. Por outro lado, foram as feministas que se re-apropriaram e subverteram esse dispositivo; foram as feministas que, nos anos de 1960-70, inventaram um outro sentido para a pílula, isto é, um poder libertador para aquela cápsula de estrógeno, usando-a como arma na revolução sexual. Lembremos, sobretudo, que o movimento feminista nos anos 60 falava de uma re-apropriação do corpo feminino; isso significava um controle total dos meios contraceptivos que foram retirados das mãos das mulheres em algum momento do século XVIII.

IHU On-Line - Com a invenção da pílula vem junto a ideia de que os filhos escravizam a mulher? Quais os problemas dessa visão?

Maria Rita César - É certo que a mulher foi “escravizada”; talvez escravizada não é um bom verbo para essa operação, é melhor que digamos que a mulher foi docilizada, no sentido em que Michel Foucault tratou dos processos institucionais. A mulher teve o seu corpo controlado pelo saber médico e ainda permanece presa nessa trama. Quanto aos filhos, se cada mulher tivesse autonomia sobre seu corpo e sua vida, saberia se deseja ou não ter filhos. Entretanto, se o binômio “mulher-mãe” se mantém, os filhos serão sempre razão de mais controle e docilização ou escravização como se queira dizer.

IHU On-Line - Qual o conceito de felicidade para uma mulher moderna em diferentes cenários: mulheres pobres e de classe social mais elevada? Como a pílula interfere nessa questão da felicidade?

Maria Rita César - Nós vivemos a ditadura da felicidade. Somos obrigados a ser felizes, caso isso não aconteça teremos que nos tratar; um psiquiatra ou psicólogo é sempre o indicado. Uma vez mais se trata aqui da captura das nossas vidas por dispositivos biopolíticos. Se porventura, em uma consulta médica, uma mulher, rica ou pobre, queixar-se de uma infelicidade, em relação à sua vida, filhos, trabalho etc., sairá do consultório com a promessa da felicidade em cápsulas de fluoxetina, sibutramina, etc. Para as mulheres, a realização de uma vida, não sei se feliz ou não, pois a felicidade é um estado e não uma coisa, estaria na possibilidade de decidir sobre si e seu corpo, com todos os meios de contracepção e aborto legalizados e acessíveis para a sua escolha.

IHU On-Line - Quais os limites culturais e conceituais da pílula anticoncepcional? Não se espera demais de um medicamento?

Maria Rita César - Uma vez mais ressalto que a pílula contraceptiva é um medicamento produzido por razões de saúde e de Estado para o controle das populações, dentro do mais exato mecanismo biopolítico (veja-se Michel Foucault, História da Sexualidade V.I). Saudemos então a apropriação dessa cápsula de estrógeno e progesterona pelas feministas e, depois, até mesmo pelas antifeministas. Os debates médicos continuam sendo produzidos no interior da mesma lógica de controle do corpo feminino. Melhora-se a formulação, diminui-se um dos elementos bioquímicos em nome da saúde da mulher, aumentam ou diminuem as taxas de câncer como efeito colateral, enfim, debates intrínsecos aos saberes médico-científicos. Entretanto, não se discutem outras naturezas de medicamentos, como, por exemplo, a utilização da testosterona, que segundo pesquisas citadas por Beatriz Preciado (filósofa foucaultiana e teórica queer) seria muito menos nociva à saúde e também funcionaria como um estimulante do apetite sexual feminino. Para Preciado, a testosterona (hormônio da masculinidade e virilidade) é uma droga biopolítica por ser uma substância ultracontrolada e de uso proibido na indústria farmacêutica. Já a progesterona, o hormônio da feminilidade e docilidade, é utilizado em larga escala sem qualquer controle, comprada em qualquer balcão sem receituário. A pílula contraceptiva de estrógeno e progesterona cumpre seu papel, pois, se administrada segundo a posologia, suspende a ovulação e é isso. As discussões precisam ser feitas a partir dos limites de produção discursiva, como fruto de um saber específico engendrado por relações de poder que governam os corpos de mulheres, homens e crianças.

IHU On-Line - Como a pílula se insere nos debates sobre subjetividade na educação e gênero?

Maria Rita César - Os enunciados sobre a pílula contraceptiva sempre estiveram relacionados à segunda onda do movimento feminista (década de 60 e 70). Por algum tempo, pensou-se inclusive que o feminismo só foi possível porque a pílula contraceptiva foi inventada. Como a segunda onda do feminismo e a pílula são quase contemporâneas, essa ligação foi inequívoca. Nos anos 60, fazer sexo e não engravidar certamente era também o sinônimo de uma revolução sexual, mas, para o feminismo, ainda faltavam mais alguns passos. Como retrospectivamente encontramos todos esses elementos no caleidoscópio multicolor dos anos 60, os debates posteriores sobre gênero irão reportar-se a esse momento da história. Com o distanciamento do tempo, podemos realizar reflexões mais agudas sobre o feminismo, os estudos de gênero e suas relações com os métodos contraceptivos, dentre estes a pílula. Entretanto, parece que caminhamos pouco. Ainda não se analisaram as formas pré-modernas de controle do corpo feminino pelas próprias mulheres, não se problematizaram suficientemente os controles biopolíticos sobre as mulheres e a reprodução (ou não) em seus corpos. Enfim, ainda, no caso brasileiro, não se debateu com a seriedade devida a legalização do aborto. Não se trata de discutir sobre o início da vida, isso é desvio; trata-se da necessidade de discutir a legalização do aborto com mulheres nos coletivos feministas, com mulheres e homens que desejam um mundo no qual corpos femininos e masculinos possam decidir autonomamente sobre o seu destino, que certamente não é a maternidade, a não ser que esse seja um desejo legítimo.

Maria Rita de Assis César possui graduação em Ciências Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, e mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Realizou estágio de pesquisa (doutorado Sanduíche) na Universitat de Barcelona, na Espanha. Atualmente, é professora no Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná – UFPR, e professora do quadro permanente (mestrado e doutorado) do Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE/UFPR. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (CNPq/UFPR) e coordenadora do Laboratório de Investigações sobre Corpo, Gênero e Subjetividade na Educação.

domingo, 8 de agosto de 2010

Sociabilidade afetada, ou: sobre as redes de relacionamento social


Relativamente recentes, as redes de relacionamento social vieram para ficar: Facebook, Orkut e Twitter, entre outras ferramentas do gênero, tornaram-se parte integral da sociabilidade contemporânea. Talvez constituam o primeiro e ainda tímido passo na direção de um mundo futuro no qual estaremos continuamente conectados aos outros sem, de fato, jamais estabelecer sólidas relações com eles. Cabe, pois, começar a pensar o fenômeno da sociabilidade virtual, sabendo que, por hora, toda conclusão ainda será provisória. Arrisco-me então a tecer algumas considerações de caráter impressionista sobre a nova sociabilidade agenciada pelas redes de relacionamento social. Quais efeitos as redes têm sobre nossa sensibilidade e sobre nossa sociabilidade, isto é, de que maneiras elas nos afetam? Ou ainda, quais afetos estão envolvidos no uso obsessivo de tais ferramentas? Porque elas se tornaram um imperativo vital no cotidiano de milhões de pessoas em todo o mundo? Como lidar com as redes de relacionamento social sem sermos totalmente afetados por sua lógica própria? De que lógica se trata aí? Eis algumas das questões que mobilizam minhas considerações.
Acredita-se que as redes de relacionamento social existam para nos manter em contato com velhos e novos ‘amigos’. Sem levar em conta o estatuto duvidoso dessas 'amizades' que se multiplicam incessantemente pelos Facebooks da vida (alguém pode ter mais de 200 amigos?), é claro que as redes nos aproximam de quem está distante. No entanto, antes mesmo do advento das redes de relacionamento social já dispunhamos de outros meios virtuais, aparentemente mais eficientes, para o contato e a proximidade com nossos amigos, tais como o Skype ou o MSN. Com o acoplamento de uma simples câmera ao computador, tais ferramentas permitem ver e interagir com a pessoa com quem falamos, de modo que se quiséssemos realmente apenas estar próximos de nossos amigos deveríamos recorrer preferencialmente àquelas ferramentas e não às redes de relacionamento social. Suspeito, entretanto, que já não estejamos muito interessados em falar ou nos relacionar com nossos amigos, nem mesmo sequer por meio de mensagens escritas: quantas vezes não observamos que um 'amigo' está on line no Facebook, mas não temos a menor vontade de conversar com ele? Sim, as redes de relacionamento social permitem estabelecer conexões entre seus usuários, sem, contudo, aproximar e relacionar as pessoas. Agrada-nos saber que as pessoas estão por ali, disponíveis, acessíveis, conectadas, desde que não tenhamos de estabelecer uma relação mais próxima com elas.
Há também quem afirme que as redes de relacionamento social permitem construir um espaço aberto de troca de opiniões e de discussões políticas, sem qualquer coerção objetiva para além do acesso a um computador ligado à internet. É verdade, e o mesmo também vale para as mensagens enviadas pelo Twitter ou pelo celular. No entanto, creio que esse uso propriamente político das redes de relacionamento social é mais do que limitado se levarmos em conta seu usuário padrão. Pode-se argumentar que o meio virtual torna possível disseminar informações e opiniões políticas instantaneamente, e é fato que a rede mundial de computadores dá suporte a um sem número de grupos de discussão política. Não me detenho aqui na avaliação da qualidade da informação e das discussões políticas alimentadas pelos comentários e opiniões de pessoas continuamente incitadas a dizer imediatamente o que pensam sobre todo tipo de assunto. Salvo excessões, tais opiniões são desprovidas de reflexividade e permanecem enclausuradas no nível primário da reiteração de preconceitos adquiridos desde longa data. Este é o preço a pagar pela democratização da irreflexividade que corrói a relevância das opiniões políticas bem formadas em nome da interatividade instantânea, acessível a qualquer um sob a proteção do anonimato e da ausência de responsabilidade. Nesse sentido, parece-me que as redes de relacionamento social tendem a empobrecer ainda mais os argumentos políticos apresentados na rede virtual. Afinal, num blog o tempo e o espaço destinados a pensar e escrever sobre algum assunto político é muito maior do que no caso das ferramentas de relacionamento social, mais rápidas e instantâneas. Como apresentar um argumento político minimamente coerente ou complexo em 140 caracteres (ou menos), limite imposto pelo Twitter? Como observou Marcia Tiburi no seu excelente ensaio sobre as implicações e desvarios da comunicação via Twitter, no número 147 da Revista Cult, a linguagem irônica da ‘piada’ reduz aquilo a que se refere à lógica publicitária do slogan, que corrompe e impossibilita o diálogo político. Suponho que, com o crescimento das redes de relacionamento social, cada vez menos pessoas estarão dispostas a perder seu tempo compondo ou lendo matérias nos blogs: mais valerá 'curtir' um vídeo postado no Facebook ou escrever um comentário jocoso seja lá sobre o que for no Twitter. Revista Cult » Sobre Twitter e Severinos
Mas então, por que as ferramentas de relacionamento social se tornaram imprescindíveis para milhões de pessoas no mundo todo? Arrisco uma hipótese. Talvez as redes de relacionamento social não se destinem, em primeiro lugar, a aproximar as pessoas, promover relações afetivas, discutir problemas políticos ou estabelecer parcerias profissionais, como frequentemente se afirma. Talvez sua importância se deva ao fato de que as redes nos proporcionam duas coisas essenciais no mundo contemporâneo: elas nos permitem estabelecer conexões que se multiplicam indefinidamente e sem maior compromisso entre as pessoas envolvidas; ao mesmo tempo, elas também nos garantem uma oportunidade para nos manifestarmos e nos tornarmos simbolicamente valiosos e visíveis. Vejamos como se articulam essas duas dimensões fundamentais das redes de relacionamento social.
As redes permitem que manifestemos e certifiquemos nossa existência pelo simples fato de estarmos ali, presentes na pracinha virtual junto a todos os que ali também já se encontram. Os usuários das redes fazem parte de um mesmo espaço virtual compartilhado e isso talvez desperte vagos sentimentos de comunidade e de conforto emocional. Sei que vou encontrar meus ‘amigos’ se permanecer continuamente conectado à rede, aspecto não desprezível num mundo em que o isolamento e a solidão tornaram-se epidêmicos, como o comprova a disseminação global de depressões, síndromes do pânico, instabilidades e rupturas de relações afetivas, etc. Intuitivamente, sei também que as conexões virtuais são mais frouxas que quaisquer relações sociais, de modo que a multiplicação das ‘amizades’ pelas redes parece ser boa resposta para o dilema de pessoas que anseiam por relações sociais, mas já não conseguem mais suportar os seus encargos, como ressaltou Zygmunt Bauman em seu livro Amor líquido.
Estar presente nas redes de relacionamento social é também uma maneira de permanecer ‘ligado’, ‘conectado’, up to date, ou seja, em conformidade com as demandas e solicitações do presente imediato. Confirmamos, assim, nossa adesão ao gigantesco fluxo da produção, captação e reprodução de informações, gerado espontaneamente pelo compromisso voluntário de milhões de usuários que se consideram livres, donos e criadores de sua própria existência, no exato momento em que ‘caem’ na rede e são por ela afetados de maneiras muito semelhantes. Trata-se aí de uma captura, sim, pois a rede que promove o relacionamento entre as pessoas também o padroniza e limita, aspecto que se comprova pela gritante reiteração de posts que apenas se repetem e quase nunca trazem qualquer surpresa ou novidade.
Além disso, as redes de relacionamento social também suprem uma necessidade contemporânea, central nas sociedades espetacularizadas em que vivemos, a necessidade de manifestarmos aos outros ‘quem’ somos. Mais propriamente falando, tais ferramentas constituem meios adequados para mostrar aos outros o que queremos que eles vejam. Desse ponto de vista, as redes de relacionamento social funcionam como imensa vitrine na qual cada um se apresenta como mercadoria portadora de logo publicitária e valor simbólico agregado. Já notaram como as pessoas parecem ser muito mais ‘interessantes’ nas redes de relacionamento do que ao vivo? Nas redes, apresentamo-nos como mercadorias valiosas no vasto mercado das trocas simbólicas diversificadas de nosso tempo. A cada post ou comentário, agimos no sentido de valorizar e incrementar nosso ‘capital humano’, isto é, buscamos valorizar a persona virtual que deve nos promover e abrir novas conexões com os outros, dentro e fora da rede.
Por isso, nas redes de relacionamento social estamos continuamente ocupados com a construção de nossa persona virtual. Este processo começa com a declaração de informações determinadas, como preferências musicais, culturais, citações prediletas, filmes do coração, empregador, religião, etc., e se prolonga indefinidamente na postagem cotidiana de fotografias de lugares visitados e de pessoas queridas; vídeos de músicas extraídos do Youtube; informações sobre assuntos diversos retirados da internet; comentários a respeito do material que outros postaram e que nós 'curtimos'. Em meio à contínua construção de nossa personalidade virtual, os limites entre público e privado vão se fazendo quase totalmente indiscerníveis, tornando questionável até mesmo pensar segundo os termos daquela velha distinção.
Por certo, constantemente modulamos, criamos e recriamos as muitas facetas de nossa personalidade nas diversas relações sociais que travamos todo dia com os outros. Mas a questão importante aqui é que as redes de relacionamento social parecem afetar nossa capacidade e nossa maneira de estabelecer relações. Em primeiro lugar, penso que os afetos suscitados e intercambiados na rede a cada postagem são mais importantes que o conteúdo mesmo das mensagens trocadas entre os usuários. Nossa permanência nas redes não se deve tanto a um suposto desejo contemporâneo de interagir com os demais. Antes, limitamo-nos a agir e reagir ao adicionar material à rede e ao comentar o material adicionado por outros. Se prestarmos atenção, veremos que nossos comportamentos nas redes de relacionamento social obedecem a algumas regras e padrões, facilitados e induzidos pelos próprios recursos oferecidos pelas plataformas das redes virtuais de relacionamento. Nelas, o outro não costuma ser mais que o destinatário de captação e reprodução dos fragmentos virtuais de mim mesmo disseminados pela rede. Nessas ferramentas, o outro é aquele a quem ‘cutucamos’ ou ‘curtimos’, mas, sobretudo, é aquele de quem esperamos que se torne nosso seguidor e admirador.
Querendo ou não, quem ‘cai’ na rede muito rapidamente sente o afeto obsessivo de averiguar a repercussão de seus posts e comentários. Discretamente, se instala e se reproduz o desejo de que nossa persona virtual alcance o máximo rendimento simbólico no mercado fugaz das identidades publicitárias. Queremos nos tornar celebridades, ainda que capazes apenas de brilhar no tempo exíguo de exibição de uma página do Facebook (post antigo é página virada). No instante em que isto ocorre, então sentimos que nos tornamos visíveis, que somos alguém e que temos um rosto. Estabelecido o jogo do reconhecimento virtual, o afeto que enviamos e espalhamos pela rede é sempre o mesmo: vejam como tenho vários ‘amigos’ (quer dizer, seguidores), como sou versátil, divertido, inteligente, sagaz; vejam como tenho bom gosto musical, como conheço vários lugares diferentes e exóticos, vejam como sei o que está acontecendo agora. Numa roda de amigos, quem não participa das redes de relacionamento social virtual é deficitário em vários sentidos. Crusoés pós-modernos, usamos nossos computadores para fazer sinais de fumaça para outros indivíduos, também eles ilhados em seus computadores. Como o reconheceu Bauman, apenas seres isolados e desligados dos outros precisam urgentemente ‘conectar-se’ com eles.
É assim, me parece, que se tornam compreensíveis os motivos e os afetos que presidem à nossa participação intensiva nas redes de relacionamento social. Não nego, evidentemente, o caráter lúdico e prazeroso da participação nas redes. Ainda assim, creio ser fundamental pensar as afetações que elas trazem consigo, pois é justamente por meio de seu caráter lúdico e prazeroso que elas capturam seus participantes, pautando e predeterminando as possibilidades de seus relacionamentos e de seus modos de ser. Tomando emprestado o vocabulário proposto por Foucault e Deleuze, podemos pensar os usuários das redes de relacionamento social como peças voluntariamente mobilizadas no interior de um dispositivo biopolítico ilimitado, capaz de controlar e regular a vida das pessoas em suas dimensões mais sensíveis. Compreende-se agora porque a pergunta que encabeça o mural do Facebook é: “em que você está pensando agora?” Tal dispositivo agencia e controla os comportamentos, sentimentos e pensamentos contemporâneos, afetando-os de maneira discreta, porém eficiente e padronizada, ao destiná-los ao ciclo perpétuo da autopromoção e da autovalorização obsessiva. Ao mesmo tempo, a rede também dispõe acerca do modo e da intensidade com que queremos estabelecer relações com os outros. Não será por isso que as páginas pessoais dos usuários das redes de relacionamento social se parecem tanto umas com as outras?
O fantástico egocentrismo virtual promovido pelas redes de relacionamento social torna evidente dois aspectos centrais de nossa sociabilidade contemporânea: por um lado, nossa participação obsessiva nas redes é sintoma de nosso crescente desejo de conexão e de nossa crescente aversão ou, ao menos, dificuldade de manter relações com os outros. Queremos ter um milhão de ‘amigos’ desde que tais ‘amizades’ não nos confrontem, perturbem, toquem, questionem ou responsabilizem. Ou, como disse Bauman, queremos a todo instante apertar os laços de nossa sociabilidade, ao mesmo tempo em que os queremos frouxos…para que assim possamos continuar estabelecendo mais e mais conexões impermanentes. Ademais, ao cairmos presas das redes de relacionamento social, rapidamente nos convertemos em mercadorias sujeitas à exigência da contínua valorização, sob pena de nos tornarmos moeda podre no rápido e competitivo mercado das relações sociais contemporâneas, transitórias e instáveis.
Se é óbvio que nossa presença nas redes de relacionamento social não abole nossas relações propriamente ditas com os outros, também é certo que o tempo que dispendemos nas redes, plugados a nossos computadores e celulares, é ganho contra o tempo em que poderíamos estar com nossos amigos. Lembro-me aqui de um filme premonitório de 1995, Denise está chamando, de Hal Salwen, no qual um grupo de amigos passa o tempo todo dependurado no telefone - ainda não habitávamos plenamente a www -, sem jamais conseguir se encontrar. Tudo isso sem falar do tempo que gastamos espiando, vidrados, a sequência infinita dos posts. Tempo que poderíamos empregar para ver um filme, para conversar com um amigo, para ler um livro, para pensar algo e escrever num blog, ou, simplesmente, para estar junto aos amigos e à pessoa que amamos. Ou será que já nada disso nos interessa tanto assim?Por fim, restam algumas atitudes de resistência em relação à afetação que as redes produzem em nossa sensibilidade e em nossa sociabilidade: sempre poderemos nos desligar delas; ou então, desconfiarmos dos afetos autopromocionais e das afetações que elas continuamente provocam em nossas formas de estabelecer relações sociais. A invenção de novas formas de emprego das redes de relacionamento social, tendo em vista promover novas formas de efetiva relação entre as pessoas, tem de ser conquistada cotidianamente e a contrapelo dos mecanismos silenciosos que padronizam e afetam nossa criatividade, sensibilidade e sociabilidade. Tudo isso, contudo, depende de nossa capacidade de reflexão sobre o impacto que as redes de relacionamento social têm sobre nossas relações com os outros e conosco mesmos. O presente ensaio não pretendeu ser mais que uma pequena contribuição nessa direção.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Os desajustados: um Western pelo avesso


Os desajustados (The Misfits), dirigido por John Huston e com roteiro assinado por Arthur Miller, então marido de Marylin Monroe, é o que se poderia chamar de um Western pelo avesso, pois contraria todos os padrões daquele gênero cinematográfico ao por em cena, justamente, questões de gênero. Numa palavra, o filme desmonta, de maneira impiedosa, o imaginário masculino tradicional veiculado pela figura do cowboy (Clarke Gable, no papel de Gay Langland). Exibido em 1961, o filme condensa questões sociais que em muito ultrapassam o universo simbólico convencional dos westerns, ao expor dilemas como a dissolução da casa e da família, com a consequente solidão e o desarraigamento de homens e mulheres; o processo de urbanização e a destruição dos parâmetros tradicionais da vida no campo, agora preterida pelo predomínio do pequeno trabalho assalariado urbano; a corrupção da relação dos últimos cowboys com a natureza, encenada no violento aprisionamento dos parcos cavalos ainda livres e selvagens, em meio a uma paisagem lunar, devastada e desértica.
O fio condutor que amarra e perpassa esses temas é o questionamento das relações entre homem-mulher, enfocadas numa perspectiva que concede primazia ao feminino. Este é justamente o aspecto central na inversão dos padrões estéticos e de valor dos westerns tradicionais, isto é, a precedência concedida ao personagem feminino interpretado por Marylin Monroe (Roslyn Taber). Se os westerns são filmes nos quais se encena a virilidade masculina, Os desajustados submete essa lógica simbólica a seu esgotamento, e o faz por meio da delicadeza feminina.

Roslyn é o astro luminoso em torno do qual vagam os três personagens masculinos (interpretados por Gable, Montgomery Clift e Eli Wallach), todos eles magnetizados pelos atrativos contraditórios que ela encarna à perfeição, naquela que foi sua última e talvez mais bela performance no cinema. Em cada fala e em cada aparição, Roslyn é a beleza e o desespero; o vigor vital e erótico que a tudo renova e unifica, mas também a fragilidade de quem está à beira do precipício; ela é a ânsia de vida, de amor e de gentileza, aliada à intransigência para com toda forma de sofrimento e violência.
Os personagens masculinos, por sua vez, encontram-se emasculados, cada qual à sua maneira: Gay (Clark Gable) é um velho cowboy ainda charmoso, mas fracassado na vida profissional e desiludido em relação à família e aos filhos que perdeu pelo mundo; Guido (Wallach) é um farrapo humano, tão esburacado quanto o velho casaco que ele ainda guarda de sua participação na guerra, um homem marcado pela morte da jovem mulher grávida, falecida por sua própria irresponsabilidade e descuido; Perce (Clift) é um jovem cowboy miserável, deserdado pelo padrasto, esquecido pela mãe e cujos recorrentes acidentes em rodeios mambembes parecem ter afetado seu juízo.
A improvável união desses quatro indivíduos desgarrados é proporcionada pela viagem de Roslyn de Chicago a Reno, no Estado de Nevada, a fim de se divorciar. Vestida de negro, Roslyn esforça-se por decorar a fala cliché que lhe ensinou Isabelle (Thelma Ritter), a dona da pensão em que se hospedou. Para garantir sua liberdade, ela deve dizer ao juiz que o marido era violento e desrespeitava seus direitos sistematicamente. Nada disso é verdade; Roslyn quer o divórcio porque lamenta a ausência constante do marido, mesmo quando ele se encontrava presente. Este detalhe é crucial na construção de seu personagem, pois marca a natureza de seu vínculo com a vida e com o amor: Roslyn não quer apenas um compromisso, quer cuidado, delicadeza e intensidade, quer um amor de verdade e não o arremedo de uma instituição, simbolizado pelo automóvel batido que o ex-marido lhe dá como presente.
O encontro dos personagens se dá por meio do contato entre Roslyn e o cão perdigueiro de Gay, que ela afaga e agrada num restaurante do centro da cidade, ponto de encontro dos desocupados. Esse é outro detalhe crucial, pois ela, a moça da cidade, encarna ao longo do filme o cuidado pelos animais indefesos, maltratados pelos cowboys.
Estabelecido o vínculo entre os personagens, Huston nos oferece sequências memoráveis, de incrível beleza melancólica e violência desesperada, poucas vezes vistas no cinema. Menciono ao menos duas dessas sequências, pois sempre me pareceram as mais emblemáticas.
A primeira sequência se dá na casa de campo abandonada por Guido. Gay, Guido, Roslyn e Isabelle tomam whiskey e dançam ao som do rádio do carro. Ao final da sequência, Roslyn, bêbada, dança pelo jardim, cambaleante entre a dor e o prazer, e se abraça a uma árvore em busca de amparo. Nada se diz, tudo está dito pela imagem: tristeza e alegria se embaralham em seu rosto que busca o conforto da natureza. Não casualmente, as próximas sequências mostram Gay e Roslyn passando uma temporada na mesma casa, que eles começam a reformar e cuidar, tornando-a mais próxima de um lar do qual se possa entrar e sair com liberdade. Quem não se emocionar com essas imagens jamais compreenderá o fascínio que emana de Roslyn, isto é, a força transformadora da delicadeza.


A outra sequência memorável é, obviamente, a da captura dos cavalos selvagens, impressionante pelo embate violento e visceral entre os pobres cowboys e os pobres mustangs que reagem, desesperados, à perda da liberdade. Ali se encena também o ritual de sacrifício e morte simbólica do vaqueiro, isto é, do estereótipo de exportação do macho norte-americano.

A sequência é longa e perturbadora, pois Huston a mantém em suspenso até a última cena do filme. Confrontada com a violência da captura de animais selvagens que serão entregues, por uma bagatela, a comerciantes que os matarão para fazer comida de cachorro, Roslyn se enfrenta com Gay em atos e palavras. Após ser derrubada com violência por Gay, sentindo-se impotente e aviltada, Roslyn corre para longe e grita, desesperada, para os três homens, declarando-os mortos vivos, pessoas de quem se deveria ter pena. A explosão de ira da pequena mulher solitária, gritando em meio ao deserto poeirento, é aterradora e comovente.
Gay é suscetível aos apelos de Roslyn, mas também se sente vinculado às suas próprias convicções e valores tradicionais, ao seu passado como cowboy e homem livre, sem patrão e sem salário, bem como, evidentemente, sente-se atado à sua imagem de homem viril e dominador. A cena em que ele é arrastado pelo cavalo selvagem e luta com ele de maneira patética, medindo forças com o animal até derrotá-lo, dá bem a dimensão do embate de valores contraditórios que nele se agitam. Por um lado, Gay reconhece a iniquidade de seu comportamento; Perce, o vaqueiro jovem, além de Roslyn, também atua no sentido desse reconhecimento, pois compreende o absurdo da situação. Por outro lado, Gay sabe que agindo daquela maneira mantém intacta sua imagem como macho perante os demais. A tensão se explicita ao máximo com o comportamento de Guido, que, pouco antes, fora desmascarado por Roslyn, que nele denuncia o cinismo e a indiferença, por debaixo de belas palavras que apenas simulam sofrimento e culpa. Quando Guido felicita Gay e se diz orgulhoso pela vitória obtida à força contra o animal, Gay finalmente rompe a corda que atava o cavalo ao caminhão e o liberta. Nesse momento, ele rompe também a corda que o mantinha atado ao imaginário do vaqueiro solitário, viril e irresponsável. Apenas então ele está livre para amar e entregar-se a Roslyn. Não é, pois, sem experimentar boa dose de angústia, conflito e dor, que Gay finalmente cede ao amor e abandona sua vida de cowboy desventurado.
O filme termina com a única nota de esperança que ali comparece: Roslyn e Gay agora estão prontos para ter um filho e constituir um lar, uma casa. Restaria saber se isso, de fato, constituiria um final feliz. Muito dificilmente; ou, apenas, sob a condição de que também a família pudesse ser virada pelo avesso.

domingo, 30 de maio de 2010

Correspondências: cinema e literatura


Alberto Moravia (1907-1990) publicou o romance O desprezo em 1954. Menos de uma década depois, Godard (1930) o adaptou ao cinema. Outras novelas de Moravia também foram adaptadas, como O Conformista, por Bertolucci, Os indiferentes, por Francesco Maselli, A Romana, por Luigi Zampa, e La Ciociara, adaptada por Vittorio de Sica com o título de Duas mulheres. Atenho-me à adaptação de Godard, cujo filme comentei em um post anterior, pelo fato dela permitir explorar a riqueza e a complexidade implicados no diálogo entre cinema e literatura. Afinal, a adaptação de Godard põe em jogo um diálogo entre linguagens, culturas, sensibilidades estéticas e gerações distintas. Godard, francês, tinha apenas 33 anos quando dirigiu O desprezo, ao passo em que Moravia, italiano, tinha 47 anos quando publicou sua novela. A diferença de idade entre ambos marca uma geração.



Além disso, enquanto Moravia era um homem maduro e escritor já consagrado, Godard ainda era uma jovem promessa que revolucionara o cinema com seu primeiro filme, o famoso À bout de souffle (Acossado), de 1959, marco inicial da Nouvelle Vague. Nele, contara a história de amor louco e fatal entre uma jovem americana, aspirante a jornalista (Jean Seberg), e um charmoso ladrão de automóveis francês (Jean-Paul Belmondo). Godard filmara o desejo de vida e intensidade dos dois jovens até à morte - "Viver perigosamente até o fim!" - e o fizera de maneira improvisada, desrespeitando todos os cânones do cinema de sua época. Numa palavra, o amor e o romance no cinema ganhavam um frescor e uma juventude inauditos.


A novela de Moravia, por outro lado, não lança mão de recursos estéticos inovadores, explorando, à perfeição, procedimentos estilísticos bem estabelecidos, como a penetrante perspicácia psicológica aliada ao artifício da narrativa retrospectiva, que permite ao escritor analisar e repensar a própria história enquanto a narra. Quem lê o livro não consegue imaginar um filme, dado que a história narrada por Moravia se concentra na reflexão e na rememoração do narrador, o escritor Ricardo Molteni, que conta a história do fim de seu casamento com Emília.
Estabelecido o descompasso histórico e estético entre o novelista e o cineasta, importa pensar porque a adaptação dessa novela por um cineasta de vanguarda pôde ser bem sucedida.
O fundamental me parece ser o seguinte: Godard adapta o livro. Isto significa que ao mesmo tempo em que segue de perto, aliás, de muito perto, os passos da estória contada por Moravia, ele também lhe acrescenta muito de propriamente seu. Apenas a partir de tais 'acréscimos' se pode adaptar um romance para o cinema, pois é com eles que se cruza a fronteira abissal entre a palavra escrita e a linguagem imagética. Portanto, é preciso que o diretor de cinema esteja à altura do romancista, do contrário, o fracasso é certo.
No livro de Moravia, Ricardo é um personagem desesperado. Ele nos conta o fracasso em reconquistar o amor de Emília e sua narrativa é pontuada por um sofrimento crescente, manifesto em explosões de raiva, incompreensão, perplexidade e emoção transbordantes. Já o filme de Godard assume outra perspectiva, uma vez que Paul e Camille alternam a eventual explosão emocional a um comportamento mais contido e enigmático, em vista do qual o filme transcorre sem que saibamos o que vai acontecer.

Godard, depois de ter filmado o amour fou de Acossado, já não poderia retratar fielmente os personagens criados por Moravia. Assim, diferentemente de Ricardo, personagem angustiado e sofredor, Paul é arrogante, seguro de si, desconfiado, ciumento, violento, racional e astucioso. Também Camille não pretende ser a fotografia exata de Emília, pois a exuberância de Brigitte Bardot, caprichosa, entediada e introspectiva, certamente concede ao personagem de Moravia um vigor tátil e denso, uma força e uma segurança, enfim, que Emília não possuía.


Compare-se a cena crucial do filme e do livro, em que Paul/Ricardo e Camille/Emília discutem no apartamento e ela finalmente lhe diz que agora o despreza. No livro de Morávia a cena é angustiada, repleta de desespero, violência e descontrole: "Um sentimento horrível invadiu-me subitamente. O tom calmo que eu adotara era falso; eu não era razoável, sofria, pelo contrário, agudamente, estava desesperado e furioso, aniquilado; e porque empregaria eu um tom de moderação? Não sei o que passou por mim naquele momento. Sem que disso me apercebesse, pus-me de pé, a berrar (...). 'Diz a verdade ... di-la de uma vez para sempre, di-la!' Debaixo de mim o seu grande corpo perfeito, que eu amava tanto, debatia-se; o seu rosto tornara-se vermelho e como que inchado: eu devia apertar com força, e compreendi que no fundo desejava matá-la." (O desprezo, tradução de Maria Tereza de Barros Brito, Ed.Ulisseia, pp. 118-119). Em Godard, entretanto, os personagens caminham sobre o fio da navalha, oscilando entre o tédio, a dor e a dúvida, sem jamais pender definitivamente para o lado do sofrimento ou do desespero. O clima sombrio e trágico da novela, ausente na construção filmada dos personagens e de seus embates emocionais, preserva-se, por sua vez, na música de Georges Delerue.



Godard é fiel a Moravia ao preservar o enigma sutil da conversão do amor em desprezo, deixando ao espectador, como já o fizera o novelista, a tarefa de entender os complicados meandros da alquimia afetiva.
A fidelidade a Moravia também se preserva na abordagem cinematográfica do projeto do filme da Odisséia, embora, uma vez mais, se trate aí de uma genuína adaptação. Afinal, a novela de Moravia dá a Godard a oportunidade de refletir sobre o cinema, seu passado e seu futuro, algo que o romancista jamais pretendeu.

No livro de Moravia, se estabelece uma tensão insolúvel entre o roteirista (Ricardo), o produtor sensacionalista (Battista), que quer um filme de aventuras no estilo de King Kong, e o diretor alemão (Rheingold), que pretende transformar a Odisseia num romance intimista e psicanalítico, em que a demora de Ulisses em retornar para Ítaca diria respeito a seu temor de não ser amado por Penélope. A Ricardo repugnam ambas as estratégias de filmagem do clássico grego, aspecto que contribui para acentuar seu desespero e falta de perspectivas no livro.
No filme, por outro lado, o roteirista, Paul, admira sinceramente o diretor alemão (Lang), de modo que a tensão se concentra no embate entre ele próprio e o produtor americano (Palance), que corteja sua esposa e assim estabelece o elo de ligação entre os debates estéticos relativos ao projeto da Odisseia e a crise em seu casamento. Ao concentrar a tensão entre o roteirista e o produtor, Godard confere maior importância a Pokosh (Palance) que Moravia a Battista, aspecto que também lhe permite refletir criticamente sobre o cinismo violento do cinema americano, disposto a arremessar o cinema europeu de arte para longe, o que Godard registra numa cena magistral e memorável, contra o pano de fundo da frase de Lumière, "o cinema é uma invenção sem futuro".


Por fim, preserva-se também no filme de Godard a fidelidade à paisagem mediterrânea de Capri, onde Moravia situara a segunda parte de sua novela: "Subitamente, numa curva, surgiram-nos os Faraglioni e fiquei contente por ouvir Emília dar um grito de surpresa e de admiração. Era esta a primeira vez que ela vinha a Capri e até àquele momento não abrira ainda a boca. Da altura onde nos encontrávamos, os dois grandes penhascos vermelhos surpreendiam pela sua singularidade, semelhante, sobre a superfície marinha, a dois aerólitos caídos do céu sobre um espelho." (pp. 161-162) O mar de um azul profundo, cenário das navegações de Ulisses, os Faraglioni, formações rochosas imponentes como deuses, tudo isso reaparece nas belas cenas rodadas na impressionante Villa Mallaparta, ausente da novela. É contra esse fundo luminoso que se desfaz o amor entre Camille e Paul e entre Emília e Ricardo. Maior contraste entre luz e sombras dificilmente poderia ser imaginado.




Ao fim das contas, compreende-se que a relação entre cinema e literatura pode ser mais complexa do que a recorrente e justificável sensação de que os filmes estragam a boa literatura. Isto somente ocorre quando estamos diante de filmes ruins, de más adaptações, o que, definitivamente, não é o caso em se tratando do Desprezo de Godard.