domingo, 30 de maio de 2010

Correspondências: cinema e literatura


Alberto Moravia (1907-1990) publicou o romance O desprezo em 1954. Menos de uma década depois, Godard (1930) o adaptou ao cinema. Outras novelas de Moravia também foram adaptadas, como O Conformista, por Bertolucci, Os indiferentes, por Francesco Maselli, A Romana, por Luigi Zampa, e La Ciociara, adaptada por Vittorio de Sica com o título de Duas mulheres. Atenho-me à adaptação de Godard, cujo filme comentei em um post anterior, pelo fato dela permitir explorar a riqueza e a complexidade implicados no diálogo entre cinema e literatura. Afinal, a adaptação de Godard põe em jogo um diálogo entre linguagens, culturas, sensibilidades estéticas e gerações distintas. Godard, francês, tinha apenas 33 anos quando dirigiu O desprezo, ao passo em que Moravia, italiano, tinha 47 anos quando publicou sua novela. A diferença de idade entre ambos marca uma geração.



Além disso, enquanto Moravia era um homem maduro e escritor já consagrado, Godard ainda era uma jovem promessa que revolucionara o cinema com seu primeiro filme, o famoso À bout de souffle (Acossado), de 1959, marco inicial da Nouvelle Vague. Nele, contara a história de amor louco e fatal entre uma jovem americana, aspirante a jornalista (Jean Seberg), e um charmoso ladrão de automóveis francês (Jean-Paul Belmondo). Godard filmara o desejo de vida e intensidade dos dois jovens até à morte - "Viver perigosamente até o fim!" - e o fizera de maneira improvisada, desrespeitando todos os cânones do cinema de sua época. Numa palavra, o amor e o romance no cinema ganhavam um frescor e uma juventude inauditos.


A novela de Moravia, por outro lado, não lança mão de recursos estéticos inovadores, explorando, à perfeição, procedimentos estilísticos bem estabelecidos, como a penetrante perspicácia psicológica aliada ao artifício da narrativa retrospectiva, que permite ao escritor analisar e repensar a própria história enquanto a narra. Quem lê o livro não consegue imaginar um filme, dado que a história narrada por Moravia se concentra na reflexão e na rememoração do narrador, o escritor Ricardo Molteni, que conta a história do fim de seu casamento com Emília.
Estabelecido o descompasso histórico e estético entre o novelista e o cineasta, importa pensar porque a adaptação dessa novela por um cineasta de vanguarda pôde ser bem sucedida.
O fundamental me parece ser o seguinte: Godard adapta o livro. Isto significa que ao mesmo tempo em que segue de perto, aliás, de muito perto, os passos da estória contada por Moravia, ele também lhe acrescenta muito de propriamente seu. Apenas a partir de tais 'acréscimos' se pode adaptar um romance para o cinema, pois é com eles que se cruza a fronteira abissal entre a palavra escrita e a linguagem imagética. Portanto, é preciso que o diretor de cinema esteja à altura do romancista, do contrário, o fracasso é certo.
No livro de Moravia, Ricardo é um personagem desesperado. Ele nos conta o fracasso em reconquistar o amor de Emília e sua narrativa é pontuada por um sofrimento crescente, manifesto em explosões de raiva, incompreensão, perplexidade e emoção transbordantes. Já o filme de Godard assume outra perspectiva, uma vez que Paul e Camille alternam a eventual explosão emocional a um comportamento mais contido e enigmático, em vista do qual o filme transcorre sem que saibamos o que vai acontecer.

Godard, depois de ter filmado o amour fou de Acossado, já não poderia retratar fielmente os personagens criados por Moravia. Assim, diferentemente de Ricardo, personagem angustiado e sofredor, Paul é arrogante, seguro de si, desconfiado, ciumento, violento, racional e astucioso. Também Camille não pretende ser a fotografia exata de Emília, pois a exuberância de Brigitte Bardot, caprichosa, entediada e introspectiva, certamente concede ao personagem de Moravia um vigor tátil e denso, uma força e uma segurança, enfim, que Emília não possuía.


Compare-se a cena crucial do filme e do livro, em que Paul/Ricardo e Camille/Emília discutem no apartamento e ela finalmente lhe diz que agora o despreza. No livro de Morávia a cena é angustiada, repleta de desespero, violência e descontrole: "Um sentimento horrível invadiu-me subitamente. O tom calmo que eu adotara era falso; eu não era razoável, sofria, pelo contrário, agudamente, estava desesperado e furioso, aniquilado; e porque empregaria eu um tom de moderação? Não sei o que passou por mim naquele momento. Sem que disso me apercebesse, pus-me de pé, a berrar (...). 'Diz a verdade ... di-la de uma vez para sempre, di-la!' Debaixo de mim o seu grande corpo perfeito, que eu amava tanto, debatia-se; o seu rosto tornara-se vermelho e como que inchado: eu devia apertar com força, e compreendi que no fundo desejava matá-la." (O desprezo, tradução de Maria Tereza de Barros Brito, Ed.Ulisseia, pp. 118-119). Em Godard, entretanto, os personagens caminham sobre o fio da navalha, oscilando entre o tédio, a dor e a dúvida, sem jamais pender definitivamente para o lado do sofrimento ou do desespero. O clima sombrio e trágico da novela, ausente na construção filmada dos personagens e de seus embates emocionais, preserva-se, por sua vez, na música de Georges Delerue.



Godard é fiel a Moravia ao preservar o enigma sutil da conversão do amor em desprezo, deixando ao espectador, como já o fizera o novelista, a tarefa de entender os complicados meandros da alquimia afetiva.
A fidelidade a Moravia também se preserva na abordagem cinematográfica do projeto do filme da Odisséia, embora, uma vez mais, se trate aí de uma genuína adaptação. Afinal, a novela de Moravia dá a Godard a oportunidade de refletir sobre o cinema, seu passado e seu futuro, algo que o romancista jamais pretendeu.

No livro de Moravia, se estabelece uma tensão insolúvel entre o roteirista (Ricardo), o produtor sensacionalista (Battista), que quer um filme de aventuras no estilo de King Kong, e o diretor alemão (Rheingold), que pretende transformar a Odisseia num romance intimista e psicanalítico, em que a demora de Ulisses em retornar para Ítaca diria respeito a seu temor de não ser amado por Penélope. A Ricardo repugnam ambas as estratégias de filmagem do clássico grego, aspecto que contribui para acentuar seu desespero e falta de perspectivas no livro.
No filme, por outro lado, o roteirista, Paul, admira sinceramente o diretor alemão (Lang), de modo que a tensão se concentra no embate entre ele próprio e o produtor americano (Palance), que corteja sua esposa e assim estabelece o elo de ligação entre os debates estéticos relativos ao projeto da Odisseia e a crise em seu casamento. Ao concentrar a tensão entre o roteirista e o produtor, Godard confere maior importância a Pokosh (Palance) que Moravia a Battista, aspecto que também lhe permite refletir criticamente sobre o cinismo violento do cinema americano, disposto a arremessar o cinema europeu de arte para longe, o que Godard registra numa cena magistral e memorável, contra o pano de fundo da frase de Lumière, "o cinema é uma invenção sem futuro".


Por fim, preserva-se também no filme de Godard a fidelidade à paisagem mediterrânea de Capri, onde Moravia situara a segunda parte de sua novela: "Subitamente, numa curva, surgiram-nos os Faraglioni e fiquei contente por ouvir Emília dar um grito de surpresa e de admiração. Era esta a primeira vez que ela vinha a Capri e até àquele momento não abrira ainda a boca. Da altura onde nos encontrávamos, os dois grandes penhascos vermelhos surpreendiam pela sua singularidade, semelhante, sobre a superfície marinha, a dois aerólitos caídos do céu sobre um espelho." (pp. 161-162) O mar de um azul profundo, cenário das navegações de Ulisses, os Faraglioni, formações rochosas imponentes como deuses, tudo isso reaparece nas belas cenas rodadas na impressionante Villa Mallaparta, ausente da novela. É contra esse fundo luminoso que se desfaz o amor entre Camille e Paul e entre Emília e Ricardo. Maior contraste entre luz e sombras dificilmente poderia ser imaginado.




Ao fim das contas, compreende-se que a relação entre cinema e literatura pode ser mais complexa do que a recorrente e justificável sensação de que os filmes estragam a boa literatura. Isto somente ocorre quando estamos diante de filmes ruins, de más adaptações, o que, definitivamente, não é o caso em se tratando do Desprezo de Godard.

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