terça-feira, 10 de agosto de 2010

Sobre os 50 anos da pílula anti-concepcional

Maria Rita César: “Maternidade é uma questão de Estado”
Por: Graziela Wolfart e Márcia Junges, 07/06/2010

IHU On-Line - Ser mãe apenas quando se realmente quer é uma possibilidade oferecida pela pílula. O que isso significa para a mulher do século XXI em termos afetivos, sociais, políticos e sexuais?

Maria Rita César - A maternidade precisa ser analisada historicamente, assim como os controles sobre o corpo feminino. A pergunta que poderia ser colocada é a respeito da historicidade da maternidade como um destino biológico ou natural. Desse modo, a maternidade ou destino maternal da mulher precisa ser problematizada a partir de transformações históricas que, desde o final do século XVIII, “inventaram” o papel da maternidade para a mulher. Todavia, a indagação fundamental deveria ser em relação aos inúmeros saberes femininos utilizados por mulheres e para as mulheres sobre como evitar e/ou interromper a gravidez antes do século XIX, isto é, antes do corpo da mulher ser tomado pela ciência médica, um saber masculino. Desse modo, vários séculos antes da pílula anticonceptiva ser criada, havia saberes que desapareceram e/ou permaneceram nas margens, isto é, saberes que existiram como contrapoderes. Pensemos que, antes do advento da pílula, as mulheres evitavam a gravidez e abortavam. Assim, a história do aborto e da contracepção é uma história fundamental ainda por ser realizada. Antes de analisarmos e saudarmos o advento da pílula como libertação feminina, precisamos lembrar que a pílula é também produto dos processos de desapropriação do corpo feminino em nome da ciência médica, ou da medicalização do corpo feminino. Se observarmos com cuidado, veremos a apropriação do corpo feminino pelo poder-saber médico em algum momento do século XIX e o controle da concepção como uma questão médico-Estatal. Lembremos do caso brasileiro das campanhas de esterilização em massa das mulheres pobres nos anos 70. Desse ponto de vista, não é a pílula que representa a liberdade da mulher; ao contrário, a liberdade trazida pela pílula advém da apropriação que as mulheres realizaram desse artefato de governo do corpo feminino (a pílula), subvertendo-o em favor de sua própria liberdade sexual. Lembremos que, até algumas décadas atrás, para uma jovem solteira comprar uma cartela significava um périplo. Hoje, as questões para a mulher contemporânea poderiam ser relativas à apropriação do seu corpo, isto é, à necessidade de se discutir contracepção e aborto a partir dessa mesma apropriação, ou seja, a partir de uma pauta feminista. Aí sim estaríamos tratando de uma conquista social, política e sexual.

IHU On-Line - Que modificações na maternidade aconteceram em função do seu uso?

Maria Rita César - Como respondi logo acima, a maternidade é a mais eficiente invenção do poder médico para o governo dos corpos das mulheres. Maternidade é uma questão de Estado. Lembremos que, nos regimes totalitários, a maternidade foi sempre exaltada como fonte inesgotável de vidas sadias e patriotas. Lembremos também que, nas guerras, o estupro é sempre uma arma utilizada. Desde a sua invenção, a crença no mito da maternidade construiu as sociedades modernas e produziu subjetividades. Mulheres que não conseguem engravidar se submetem a tratamentos brutais, caros e danosos à saúde do corpo, para realizarem o seu “destino”. No mundo contemporâneo, a maternidade segue soberana. As questões colocadas dizem respeito à possibilidade de conciliação entre trabalho e maternidade, produzindo muita culpa e sofrimento. E as coisas param por aqui. Não se interroga por que em um mundo tão “maternalizado” aponta-se como um problema a maternidade de adolescentes, em especial para as meninas pobres. Então, as mulheres não precisam ser mães? Não seria essa a lição que as meninas aprendem desde os primeiros anos de vida, embalando bonequinhas e empurrando carrinhos de bebê? Ocorre que os dispositivos de controle agem paradoxalmente, reafirmando o lugar, destino e felicidade feminina, ao mesmo tempo em que este lugar é negado para as mulheres jovens e pobres, porque a mesma maternidade tão saudada e ensinada com esmero, na periferia do mundo, será a reprodução da miséria. O problema a ser indagado não é a reprodução de jovens pobres, mas sim as lições maternais que são ensinadas, independentemente da classe social.

IHU On-Line - De que maneira podemos associar o conceito de biopoder com a questão da revolução social e cultural provocada pela pílula?

Maria Rita César - Podemos dizer que a pílula contraceptiva é produto do biopoder. O que significa isso? Se tomarmos o pressuposto de que a medicalização do corpo feminino, isto é, esse processo discursivo e institucional que produz enunciados sobre saúde e bem-estar, realiza exames e previne doenças, e, sobretudo, toma o corpo feminino como um corpo reprodutivo, desenhando políticas públicas para o controle desse potencial de reprodução, estaremos sim falando de biopolítica. Como eu disse anteriormente, a pílula contraceptiva foi desenhada para que houvesse a possibilidade mais efetiva do controle do potencial reprodutivo feminino. Por outro lado, foram as feministas que se re-apropriaram e subverteram esse dispositivo; foram as feministas que, nos anos de 1960-70, inventaram um outro sentido para a pílula, isto é, um poder libertador para aquela cápsula de estrógeno, usando-a como arma na revolução sexual. Lembremos, sobretudo, que o movimento feminista nos anos 60 falava de uma re-apropriação do corpo feminino; isso significava um controle total dos meios contraceptivos que foram retirados das mãos das mulheres em algum momento do século XVIII.

IHU On-Line - Com a invenção da pílula vem junto a ideia de que os filhos escravizam a mulher? Quais os problemas dessa visão?

Maria Rita César - É certo que a mulher foi “escravizada”; talvez escravizada não é um bom verbo para essa operação, é melhor que digamos que a mulher foi docilizada, no sentido em que Michel Foucault tratou dos processos institucionais. A mulher teve o seu corpo controlado pelo saber médico e ainda permanece presa nessa trama. Quanto aos filhos, se cada mulher tivesse autonomia sobre seu corpo e sua vida, saberia se deseja ou não ter filhos. Entretanto, se o binômio “mulher-mãe” se mantém, os filhos serão sempre razão de mais controle e docilização ou escravização como se queira dizer.

IHU On-Line - Qual o conceito de felicidade para uma mulher moderna em diferentes cenários: mulheres pobres e de classe social mais elevada? Como a pílula interfere nessa questão da felicidade?

Maria Rita César - Nós vivemos a ditadura da felicidade. Somos obrigados a ser felizes, caso isso não aconteça teremos que nos tratar; um psiquiatra ou psicólogo é sempre o indicado. Uma vez mais se trata aqui da captura das nossas vidas por dispositivos biopolíticos. Se porventura, em uma consulta médica, uma mulher, rica ou pobre, queixar-se de uma infelicidade, em relação à sua vida, filhos, trabalho etc., sairá do consultório com a promessa da felicidade em cápsulas de fluoxetina, sibutramina, etc. Para as mulheres, a realização de uma vida, não sei se feliz ou não, pois a felicidade é um estado e não uma coisa, estaria na possibilidade de decidir sobre si e seu corpo, com todos os meios de contracepção e aborto legalizados e acessíveis para a sua escolha.

IHU On-Line - Quais os limites culturais e conceituais da pílula anticoncepcional? Não se espera demais de um medicamento?

Maria Rita César - Uma vez mais ressalto que a pílula contraceptiva é um medicamento produzido por razões de saúde e de Estado para o controle das populações, dentro do mais exato mecanismo biopolítico (veja-se Michel Foucault, História da Sexualidade V.I). Saudemos então a apropriação dessa cápsula de estrógeno e progesterona pelas feministas e, depois, até mesmo pelas antifeministas. Os debates médicos continuam sendo produzidos no interior da mesma lógica de controle do corpo feminino. Melhora-se a formulação, diminui-se um dos elementos bioquímicos em nome da saúde da mulher, aumentam ou diminuem as taxas de câncer como efeito colateral, enfim, debates intrínsecos aos saberes médico-científicos. Entretanto, não se discutem outras naturezas de medicamentos, como, por exemplo, a utilização da testosterona, que segundo pesquisas citadas por Beatriz Preciado (filósofa foucaultiana e teórica queer) seria muito menos nociva à saúde e também funcionaria como um estimulante do apetite sexual feminino. Para Preciado, a testosterona (hormônio da masculinidade e virilidade) é uma droga biopolítica por ser uma substância ultracontrolada e de uso proibido na indústria farmacêutica. Já a progesterona, o hormônio da feminilidade e docilidade, é utilizado em larga escala sem qualquer controle, comprada em qualquer balcão sem receituário. A pílula contraceptiva de estrógeno e progesterona cumpre seu papel, pois, se administrada segundo a posologia, suspende a ovulação e é isso. As discussões precisam ser feitas a partir dos limites de produção discursiva, como fruto de um saber específico engendrado por relações de poder que governam os corpos de mulheres, homens e crianças.

IHU On-Line - Como a pílula se insere nos debates sobre subjetividade na educação e gênero?

Maria Rita César - Os enunciados sobre a pílula contraceptiva sempre estiveram relacionados à segunda onda do movimento feminista (década de 60 e 70). Por algum tempo, pensou-se inclusive que o feminismo só foi possível porque a pílula contraceptiva foi inventada. Como a segunda onda do feminismo e a pílula são quase contemporâneas, essa ligação foi inequívoca. Nos anos 60, fazer sexo e não engravidar certamente era também o sinônimo de uma revolução sexual, mas, para o feminismo, ainda faltavam mais alguns passos. Como retrospectivamente encontramos todos esses elementos no caleidoscópio multicolor dos anos 60, os debates posteriores sobre gênero irão reportar-se a esse momento da história. Com o distanciamento do tempo, podemos realizar reflexões mais agudas sobre o feminismo, os estudos de gênero e suas relações com os métodos contraceptivos, dentre estes a pílula. Entretanto, parece que caminhamos pouco. Ainda não se analisaram as formas pré-modernas de controle do corpo feminino pelas próprias mulheres, não se problematizaram suficientemente os controles biopolíticos sobre as mulheres e a reprodução (ou não) em seus corpos. Enfim, ainda, no caso brasileiro, não se debateu com a seriedade devida a legalização do aborto. Não se trata de discutir sobre o início da vida, isso é desvio; trata-se da necessidade de discutir a legalização do aborto com mulheres nos coletivos feministas, com mulheres e homens que desejam um mundo no qual corpos femininos e masculinos possam decidir autonomamente sobre o seu destino, que certamente não é a maternidade, a não ser que esse seja um desejo legítimo.

Maria Rita de Assis César possui graduação em Ciências Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, e mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Realizou estágio de pesquisa (doutorado Sanduíche) na Universitat de Barcelona, na Espanha. Atualmente, é professora no Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná – UFPR, e professora do quadro permanente (mestrado e doutorado) do Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE/UFPR. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (CNPq/UFPR) e coordenadora do Laboratório de Investigações sobre Corpo, Gênero e Subjetividade na Educação.

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