quarta-feira, 18 de maio de 2011

Resenha do livro de Benedito Nunes, Ensaios Filosóficos, publicada na CULT 156


Benedito Nunes, ou a arte do ensaio

A morte de Benedito Nunes em 27 de fevereiro passado deixa grande vazio na cena intelectual brasileira. Em longa e fértil trajetória de pensamento, Benedito Nunes foi expoente maior da tradição ensaística nacional, reunindo em seus textos primorosos rigor acadêmico e estilístico, condensados numa prosa elegante e acessível ao leitor, façanha rara no ambiente acadêmico, tão inclinado ao hermetismo, quando não ao pedantismo.
Com organização e apresentação de Victor Sales Pinheiro, a editora WMF Martins Fontes lançou recentemente Ensaios Filosóficos, coletânea que abarca vinte e um ensaios publicados entre 1960 e 2004. Os textos percorrem a história da filosofia de Platão a Paul Ricoeur, passando por Hegel, Nietzsche, Heidegger, Husserl, Gadamer, Sartre, Foucault e Hannah Arendt. Temos aí excelente síntese dos interesses filosóficos que marcaram a reflexão de Benedito Nunes, singularizada por abordagens em que temas centrais da fenomenologia, da hermenêutica e da estética são abordados a partir de seu entrelaçamento e confluências. Em artigos bem tramados e estratificados em diversas camadas de sentido, capazes, portanto, de interessar ao especialista e ao leitor não iniciado, Nunes discorre sobre as interações entre poesia e filosofia, sobre as relações entre narrativa histórica e ficcional, sobre os aportes da hermenêutica para a teoria social, bem como sobre a articulação entre filosofia, memória e tempo. Em cada um dos textos, o autor sempre toma a reflexão sobre a linguagem e seus meandros como foco privilegiado de consideração. Assim, no ensaio “Poesia e Filosofia: uma transa”, de 1999, Nunes afirma que o “movimento de vaivém da filosofia à poesia e da poesia à filosofia remonta à compreensão preliminar, linguageira, do ser no meio do qual nos encontramos.” (p.17) Se é certo que “o ensaio pensa em fragmentos”, como afirmou Adorno, citado por Victor Sales Pinheiro em sua apresentação, também é verdade que os ensaios de Benedito Nunes possuem grande coerência temática e de estilo, aliando clareza analítica e erudição, manifestos em discussões precisas e panoramas teóricos que situam a gênese histórica das questões abordadas.
Fiel à sua formação fenomenológica e hermenêutica, mas sem jamais ceder ao sectarismo, Benedito Nunes, sobretudo em seus ensaios dos anos 60, atuou como importante embaixador cultural, introduzindo e analisando para o leitor brasileiro, em primeira mão, as principais referências teóricas da cena intelectual francesa de então. Assim, a publicação da Crítica da Razão Dialética, de Sartre, suscitou imediatamente largo ensaio, no qual Nunes discutiu a inflexão marxista que então marcava o projeto fenomenológico-existencial do autor de O ser e o nada. Nesse mesmo período, Benedito também nos transmitiu seu testemunho e opinião a respeito das discussões provocadas pela publicação da peça teatral sartreana, Os sequestrados de Altona. Já no interessante ensaio “Vertentes”, de 1969, Nunes sistematizou as tensões e divergências teóricas que agitavam o pensamento francês, em meio à contraposição entre fenomenologia (Merleau-Ponty), existencialismo marxista (Sartre), estruturalismo (Lévi-Strauss) e o projeto arqueológico de Michel Foucault, de quem o autor nos oferece uma perspicaz discussão acerca das continuidades e transformações teóricas entre As palavras e as coisas, de 1966, e a então recém publicada Arqueologia do Saber, discussão em meio à qual ele ainda mencionava o Diferença e Repetição, de Deleuze. O sismógrafo de Benedito Nunes sempre esteve atento aos abalos e deslocamentos teóricos provocados pelas obras-mestras do pensamento filosófico contemporâneo, e a presteza com que ele discutiu as teses centrais dos três volumes de Tempo e Narrativa, dentre outros textos de Ricoeur, em 1988, pouco depois de sua publicação, mostra bem que seu vigor em nada esmoreceu com o tempo.
Para concluir, observo que os ensaios dos anos 60 e 70 foram publicados nos suplementos culturais dos principais jornais brasileiros. Menciono este fato porque hoje isto seria quase impensável, dada a triste política editorial que vem promovendo a sistemática banalização da linguagem e do pensamento em nome de interesses mercadológicos que subestimam a inteligência do leitor. Por sua vez, o mecanismo perverso se retroalimenta quando o leitor, já mal acostumado, esquiva-se de qualquer matéria que lhe apresente dificuldade ou maior exigência reflexiva. Vai se perdendo assim o intercâmbio entre o intelectual, as obras filosóficas e o público letrado, nexo tão bem cultivado por Benedito Nunes, para quem “só a incessante leitura das obras filosóficas, na perspectiva do mundo atual, poderá, para nós, estudantes de filosofia, reacender o perdido fulgor público da ação do pensamento, pois que a leitura dessas fontes também age sobre nós no plano moral.” (p. 41). Felizmente, contra a esterilidade intelectual de boa parte da mídia contemporânea, esta revista constitui importante esteio.