quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Melancolia, de Lars von Trier: um filme na contramão da história


Sim, um filme na contramão da história, corajoso e belo. A começar pelo fato trivial de que não é um filme para se ver em casa. Esqueça sua tevê de plasma acoplada ao 'home theater' e vá ao cinema, como manda(va) o figurino. É preciso tela grande e som potente para desfrutar como se deve da bela fotografia e da música de Wagner, que atua como personagem e alinhava o filme do começo ao fim.
Melancolia segue a mesma vertente estética de Anticristo, fundindo alguns poucos princípios remanescentes do grupo Dogma, como câmera na mão e exploração de closes que capturam a alma dos atores em cena, à composição de imagens altamente estetizadas, em câmera lenta ou mesmo estáticas, belamente coloridas e adornadas por música erudita.
Como no filme anterior, trata-se de uma alegoria e os personagens encarnam protótipos. Em Anticristo o tema era o mal, a crueldade em sua associação à figura feminina da bruxa, em oposição à ciência moderna (psicologia) encarnada na figura masculina; agora trata-se do fim do mundo como alegoria da morte, da qual até hoje ninguém escapou. Por isso, o fim do mundo de von Trier nada tem que ver com os conhecidos chavões do cinema catástrofe. Novamente, os personagens representam posições ou possibilidades humanas de nosso tempo diante do fato inevitável da morte.
Semelhante a Anticristo, o filme se divide em prólogo e duas partes, cada uma delas dedicada a um dos personagens femininos que predominam, Justine (magnificamente interpretada por Kirsten Dunst, tendo-lhe valido o prêmio de melhor atriz em Cannes) e Claire, belamente interpretada por Charlotte Gainsbourg, protagonista do filme anterior.
O prólogo dá o tom do filme e prepara o espectador para as cenas que assistirá: a primeira cena, já sob o fundo da música wagneriana, é uma fotografia de Justine vestida de noiva, profundamente deprimida; seguem-se outras imagens que reaparecerão ao longo do filme, todas em câmera lenta, com ênfase no asteróide 'Melancolia' em sua aproximação da Terra. Cenas como essas não podem ser vistas na televisão.
A parte dedicada a Justine trata de seu casamento, em particular, das formalidades festivas meticulosamente cuidadas por Claire e custeadas pelo dinheiro de seu marido cientista, bem interpretado por Kiefer Sutherland. Tudo se passa num castelo em propriedade rural, afastado da cidade, o que faz da natureza um personagem a mais do filme, como, aliás, já ocorrera em Anticristo.
A primeira parte recorda a temática dos conflitos familiares, tão bem explorada por outro cineasta dinamarquês em Festa de família (1998), de Thomas Vinterberg, também filiado ao grupo Dogma. Mas há muito mais do que a revelação pública das fragilidades e canalhices pessoais, pois a noiva está profundamente deprimida, enquanto os convivas e o noivo se comportam como se nada estivesse acontecendo, ao passo em que Claire e seu marido se desdobram para manter as aparências.
Mas, que aparências precisam ser mantidas? Não se trata apenas de preservar a boa ordem familiar, à la Bergman; é preciso manter a boa ordem em face do risco extremo da morte, do fim do mundo. Enquanto se desenrola o fiasco do casamento, o asteróide se aproxima. Ninguém parece dar muita atenção ao fato, mas Juliette permanece intrigada, talvez fascinada, talvez consciente demais de tudo que está por ocorrer. E não consegue representar a felicidade comprada com o dinheiro do marido da irmã.

A parte dedicada a Claire encena seu cuidado e preocupação diante da depressão que acomete a irmã, bem como seu horror diante da iminência da morte provocada pelo possível choque do asteróide. São belas as cenas em que ela cuida de Justine, completamente abatida por uma depressão que lhe desfigura o rosto e o corpo. Nesta parte do filme cresce também a importância do personagem masculino, que uma vez mais encarna a ciência moderna e sua exigência de cálculos destinados a garantir que tudo seguirá bem, nada de mal acontecerá e todos seguirão felizes para sempre.
Quando finalmente todos compreendem que a trajetória do asteróide 'Melancolia' tem um alvo certo, o filme expõe as diferentes possibilidades humanas diante da morte inevitável. Justine se entrega com volúpia ao asteróide em uma cena memorável: seu corpo, antes frágil e debilitado, agora exibe um vigor tátil deslumbrante, resplandecendo na relva sob a luz da lua.
Claire é a imagem do pânico e da ansiedade e as cenas em que ela corre desnorteada com o filho pequeno nos braços, tentando protegê-lo da catástrofe sob forte chuva de granizo, são desesperadoras. A atitude do marido cientista é de total covardia: às escondidas, suicida-se tomando todos os comprimidos que Claire havia escondido para a eventualidade do choque com a 'Melancolia' ser de fato inevitável.
Nesta segunda parte, Justine simboliza a coragem e a lucidez não científica, existencial. Ela diz "saber coisas", mesmo sem poder explicar porque as sabe; em particular, ela sabe que todos estamos sozinhos e que a morte é inevitável. E é apenas por ser detentora desse saber que ela pode ajudar a irmã e seu filho pequeno a enfrentar a violência do fim, armando uma estratégia sabidamente inútil, mas que ao menos reconforta a criança.

Um filme na contramão da história, na contramão de nosso presente, ávido de bom-mocismo científico e regado a felicidade comprada.
Quem quiser mais informação, em inglês, pode acessar http://www.melancholiathemovie.com/
http://youtu.be/wzD0U841LRM

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

La piel que habito, Almodóvar

Há vários anos Almodóvar assumiu o raro posto de cineasta autoral, com pleno domínio de sua linguagem narrativa e estética. La piel que habito não escapa à regra, embora seja um filme inquietante, em que as velhas temáticas se encontram com novos problemas. Está lá a destreza narrativa, por exemplo, que permite ao diretor começar o filme no meio da ação, voltar ao passado para depois retornar ao presente, neste caso, o ano futuro de 2012. Garante-se com isso a atenção do espectador, que tem de reconstruir a estória que está sendo contada. Estão lá os velhos atores de sempre, como Marisa Paredes e Antonio Banderas. Está ali a música, que atua como personagem (ela é responsável por certos acontecimentos decisivos no filme) e como fio condutor da narrativa. Está lá o drama familiar, a loucura do amor e de sua perda, as obsessões amorosas, etc. Encontra-se ali, finalmente, a temática recorrente sobre a instabilidade das identidades sexuais e de gênero.
Mas agora acrescenta-se um problema novo: a ciência e o desejo de produzir um corpo à imagem e semelhança de outro corpo, já perdido. E é justamente com a intervenção da ficção científica que o filme assume um ar inquietante, claustrofóbico e violento. Se os filmes anteriores mostravam o gosto de Almodóvar pelo travestismo, agora essa temática é levada até seu extremo mais radical por meio de cirurgias capazes de transformar e reconstruir completamente o corpo de uma pessoa. O tema é atualíssimo e permanecerá conosco por muitos e muitos anos.
Mas enquanto nos filmes anteriores a transformação e a instabilização das relações de gênero e de identidade sexual eram liberadoras, operando como um sopro de ar fresco em meio à monotonia da heterossexualidade normativa, agora o procedimento assume contornos incertos, assustadores. Como habitar uma pele que não me pertence? Como posso viver num corpo que não é meu? Quem sou eu, quando habito um corpo que me foi implantado? Eis as questões que esse filme impactante propõe aos espectadores. Em tempo: esqueçam essa história de primeiro filme de terror de Almodóvar! Mesmo em seus momentos mais sombrios, Almodóvar é Almodóvar e jamais perde a mão.