terça-feira, 24 de julho de 2012

Texto de Maria Rita na Gazeta do Povo de 25.07.2012


Opinião

Terça-feira, 24/07/2012

SÍNTESES – O FUTURO DO FEMINISMO

OPINIÃO 1

O futuro já chegou


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Publicado em 24/07/2012 | MARIA RITA DE ASSIS CÉSAR
Não é possível falar de feminismo e sim de feminismos. Feminismo liberal, materialista, estruturalista, pós-estruturalista, pós-moderno, pós-feminismo; um cardápio variado, como demandam as urgências do mundo. Uma história do feminismo? Não, o feminismo tem muitas histórias: vários passados, inúmeros presentes e infinitos futuros.
O feminismo está fora de moda? Ser feminista não tem mais sentido? Claro que não! O feminismo é luta social pela igualdade entre todos os gêneros (homens, mulheres, transexuais, travestis, transgêneros etc.), pelo fim da violência contra as mulheres e demais minorias sociais-sexuais. Mas o feminismo também é postura teórico-intelectual que ocupa um espaço importante na produção do conhecimento.
Para além dos movimentos feministas históricos e tradicionais, atuantes desde o início do século 20 com importantes conquistas, dentre as quais a luta pelo fim da ditadura militar no Brasil, os novos movimentos feministas trazem novos questionamentos. Por exemplo, a crítica da noção de identidade, pois feministas não são somente mulheres. Sim, o feminismo nasceu como luta das mulheres contra a desigualdade entre homens e mulheres, denunciando as violências de um mundo construído no masculino. Entretanto, atualmente alguns homens reivindicam outros papéis para a expressão de suas masculinidades. Mulheres e homens, heterossexuais, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, trangêneros, todos e todas podemos ser feministas.
Os feminismos que recusam “a mulher” como sujeito do feminismo são responsáveis por novos pontos de vista acadêmicos e por novas formas de ativismo social. Esta é a origem dos movimentos sociais de inspiração queer. Queer é um velho adjetivo em inglês para designar pejorativamente homossexuais, tendo ganhado novo sentido político nas lutas da comunidade gay e lésbica e no universo intelectual contemporâneo. Os movimentos sociais de inspiração queer criticam e tensionam as noções de identidades sexuais fixas e vêm produzindo novidades importantes no campo das reivindicações de direitos das minorias sexuais e da denúncia da violência.
Movimentos como a Marcha das Vadias (no mundo todo), o Femen (no leste da Europa) e o La Barbe (mulheres que se manifestam usando barbas postiças na França) mostram as novas caras do feminismo. Além de denunciar a desigualdade e a persistente violência contra as mulheres, gays, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros, estes movimentos colocam em cena um corpo e uma sexualidade que não têm medo de se mostrar, funcionando como lugar de reivindicação e luta política. A exposição pública dos corpos nus, enfeitados e pintados com mensagens como “meu corpo, minhas regras”, “tire seu rosário dos meus ovários” e “lugar de mulher é onde ela quiser” dão novos sentidos políticos a todos/as que se autodenominam como vadios/as e tomam posse de seus corpos e das ruas das cidades. Do mesmo modo, mulheres mostram os seios levantando cartazes contra os rumos econômicos da Europa, ou ainda desfilam suas barbas postiças pelas ruas de Paris, interrompendo o fluxo normalizado de cidade que cala, violenta e assassina mulheres e outras minorias sexuais.
Os novos movimentos feministas mostram que fazer política no presente é colocar em cena o corpo e o desejo. Em outras palavras, o futuro do feminismo já chegou, politizando o corpo, a sexualidade e o desejo como marcas fundamentais da luta social e como matéria intelectual para muitos campos científicos.
Maria Rita de Assis César é professora do Setor de Educação e do programa de pós-graduação em Educação da UFPR.

Just Kids, de Patti Smith



Conheci a música de Patti Smith em meados dos anos 80, na universidade. Ela continuava sendo a musa do punk-rock em plena era pós-punk. Claro que não conhecia nada de sua história nem tampouco a música que ela já fizera desde meados dos anos 70. As informações não circulavam facilmente então, não havia you tube, mas o recado estava dado: Patti Smith era um sinal de que a distância entre o final dos anos 60 e meados dos anos 80 não podia ser medida cronologicamente. Os canais de comunicação ainda estavam abertos e era possível ouvir Velvet Underground, The Doors, Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Zé e Jimmy Hendrix como se a música deles fosse contemporânea de The Cure, Bauhaus, Joy Division, David Bowie, etc. Não falo dos estilos musicais, mas daquilo que sempre constituiu a história do rock: rebeldia. Nessa perspectiva, Patti Smith era um elo de ligação sobrevoando o tempo dos relógios.



Conheci a obra fotográfica de Robert Mapplethorpe em meados dos anos 90, quando morava e estudava em Nova York. Já eram outros tempos: a AIDS e o neoliberalismo haviam cortado os elos de comunicação entre fim dos 60 e o fim dos anos 80. O próprio Mapplethorpe simbolizava tragicamente esse fim, assassinado prematuramente em 89, mais uma vítima da epidemia do HIV.


De todo modo, sua obra falava justamente desse mundo que desaparecera, o mundo da experimentação com o corpo, com a sexualidade, com o prazer e a dor de existir na contramão da história. Dentre as fotos que vi, me impressionaram aquelas sobre as experiências sado-masoquistas de Robert e de seus companheiros pela noite escura dos clubes S/M de NY, transformadas em arte da mais clássica sobriedade e equilíbrio formal.



Graças a Just Kids, o premiado livro de memórias escrito em 2010 por Patti Smith, descobri que ela e Mapplethorpe foram muito mais que namorados, amantes e amigos, pois fizeram de sua relação uma fonte contínua de inspiração para suas criações artísticas. Fidelidade à arte, eis o que os uniu em 1967 e os manteve unidos mesmo depois que Mapplethorpe mergulhou de cabeça no universo homossexual.
Descobri o livro por acaso. Voltava de Paris e a perspectiva de passar mais de 10 horas em claro me levou à ótima livraria gay do Marrais, Les mots à la bouche. A fotografia da capa chamou minha atenção imediatamente. Patti e Robert estão no parquinho de diversões de Conney Island. Antes que se instaurasse a ditadura da moda, era preciso criar-se e recriar-se com o que se podia garimpar aqui ou ali. Patti usa roupas claras e uma faixa no cabelo liso e negro, calças jeans arregaçadas de quem molhou os pés no mar gelado; é mais uma dentre tantas outras garotas hippies de 1970. Robert é meticuloso: chapéu negro, casaco negro, calça jeans escura e camiseta negra treliçada, deixando ver o branco do corpo magro realçado pelo lenço branco ao pescoço. Juntos, são a imagem de uma juventude disposta a revolucionar a cultura, mesmo que ainda não saibam como. Têm pouco mais de 20 anos e são dois desconhecidos tentando a vida em NY, enfrentando estoicamente a fome, a pobreza e a incerteza. Sabem apenas que querem ser artistas. 
Patti encara a câmera com seriedade, como quem desafia corajosamente o presente e o futuro; Robert, com o sorriso discreto de quem sabe que um dia triunfará. A história dos dois está contida nessa fotografia tirada por um senhor em seu velho lambe-lambe. Patti é um reservatório de energias em ebulição, mas ainda desconhece o uso possível de toda a força rebelde que vai se acumulando dia a dia em seu corpo magro. Robert já encarna a liberdade soberana do rebelde que combina ousadia desabusada e sensibilidade clássica: impossível não se deixar cativar por ele.

O livro vale a pena por muitos motivos. É uma bela descrição da louca e decadente NY nos anos 60-70, época da Factory de Andy Warhol e do celeiro de criação que foi o Chelsea Hotel; é o diário cativante de dois jovens tentando definir artisticamente seus destinos, quase às cegas: aos 20 e poucos anos, Robert nunca tirou uma fotografia e Patti nunca cantou ou compôs música! O livro é também um retrato do amor para além da amizade e do romance juvenil, uma aposta na fidelidade acima de todas as circunstâncias, incluindo-se a morte.
É, enfim, um relato nostálgico e belamente escrito por alguém cuja voz madura relembra todas as incertezas e dificuldades por que passaram os dois jovens de origem católica, loucos por arte e por tornarem-se artistas, mas desprovidos de qualquer apadrinhamento ou apoio econômico em seus começos.


Será que a publicação desse livro sinaliza um reatar de laços entre a rebeldia criativa dos 60-70 e o século que se inicia? O mais provável é que não. O tempo não volta para trás e vivemos hoje noutro mundo.
Mas agora que o neoliberalismo entrou em crise e que o fantasma da AIDS parece menos assustador, já é novamente possível reavaliar o potencial criativo e disruptivo dos anos 60-70. Talvez assim também seja possível começar a avaliar as novas ondas estético-políticas que começam a se formar no horizonte do presente. Será que já não somos testemunhas de novas correspondências temporais entre presente e passado, para além do tempo dos calendários?


Finalmente: o livro foi traduzido para o português pela Cia das Letras. Não sei quanto vale a tradução, mas o título escolhido me parece desastroso: Só garotos não vale como tradução de Just kids; melhor teria sido deixar o título no original, como fizeram os franceses...

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Marcha das Vadias em Curitiba 2012

Escrevo com a memória ainda fresca, repleta das cenas, depoimentos, cantos e gritos coletivos, banhados pela morna e bela luz invernal que realçou corpos-mensagem, cartazes e bandeiras durante a manhã do dia 14/07/2012. Em certo sentido, nada haveria que acrescentar. As fotografias da Marcha das Vadias de Curitiba, imediatamente divulgadas pela mídia e por diversas redes sociais, falam por si mesmas; os corpos nus e suas inscrições são auto-explicativos: "Não é sobre sexo, é sobre violência", dizia um corpo. "Meu corpo, minhas regras", dizia outro. "Entre homem e mulher, só o coração deve bater." "Ei, machista, gozar é uma delícia!". "Estão nuas e cobertas de razão".
Se escrevo ainda alguma coisa é apenas para tentar traduzir o que se encontra subentendido nessas mensagens políticas da epiderme.
A Marcha das Vadias mostra-se singular em relação a outros movimentos de mulheres e minorias. Por certo, há semelhança no plano dos discursos e das reivindicações. Mas há diferenças interessantes. O movimento começou em 2011 com jovens mulheres feministas canadenses, que resolveram enfrentar as estratégias de responsabilização das vítimas da violência masculina: "se são violentadas é porque se vestem como vadias (slut)...", disse um policial. Donde o Slutwalk, a marcha das vadias. O movimento se internacionalizou rapidamente e é sempre organizado por coletivos ou grupos de feministas. No Brasil, um aspecto interessante é que os participantes da Marcha das Vadias não se definem pelo recurso a uma identidade determinada. Vadias somos todxs! Cabe todo mundo: homens e mulheres, jovens, adultxs e idosxs, homossexuais, lésbicas, heterosexuais, transsexuais, travestis e quem mais assumir o feminismo e a atitude queer, reunindo crítica, política, ironia, coragem, criatividade e despudor. O caráter artesanal dos cartazes, a pintura tosca nos corpos, a ironia derrisória, tudo isso compõe um clima anárquico, divertido e anti-normativo, que caracteriza e distingue a Marcha no Brasil.
Mas talvez a principal diferença em relação a outros movimentos de minorias esteja em que a Marcha das Vadias, no Brasil e em outros lugares, pratica uma política corporal, isto é, uma política do corpo ou uma política como corpo-a-corpo no espaço público, disseminando imagens poderosas pelas redes virtuais e pela mídia eletrônica. Seu lema parece ser: se o corpo é o lugar privilegiado de inscrição de múltiplas formas de sujeição e violência, seja então o corpo uma arma de combate político cotidiano: "Machismo, racismo e homofobia: a nossa luta é luta todo dia".
A marcha simboliza a luta da vida nua que promove um curtocircuito nos sistemas biopolíticos hegemônicos de dominação heteronormativa, revertendo a fragilidade do corpo nu em força político-simbólica. Política como desconstrução da heteronormatividade. Dito assim parece complicado, acadêmico demais, mas na verdade a coisa é bem simples e tem tudo a ver com nosso cotidiano: o corpo, a sexualidade, o prazer, o gênero, a reprodução e sua interrupção, os amores e as amizades, tudo isso é regrado por normas que ditam o que pode e o que não pode; quem pode e quem não pode; aonde pode e aonde não pode; quando pode e quando não pode. E todas essas normas são garantidas e reproduzidas por homens e por mulheres que pensam-e-se-comportam-como-homens. Aos 'a-normais' a violência, o desprezo, o escárnio, a incompreensão, a morte.
Contra a hegemonia do poder normativo masculino, patriarcal, a Marcha das Vadias promove a manifestação dos corpos desviantes, desviados, os corpos que falam, gritam e exigem, os corpos que se exibem, se divertem, se beijam e se abraçam publicamente, escandalosamente. Política da vida escandalosa ou vida como escândalo político? Tanto faz. O que importa é que cada manifestante imponha a si mesmo uma transformação no modo de despir ou vestir seu corpo e suas ideias, alterando seu modo de existir e conviver com os demais.
Contra a violência que assassina, mutila e traumatiza, a coragem dos corpos que não se escondem, mas vibram e faíscam ao aparecer em praça pública.
Contra o silêncio que cala e oprime, a crueza barulhenta dos corpos insubmissos que denunciam: 13 mulheres são agredidas por dia em Curitiba, para ficarmos com as estatísticas oficiais do quarto estado brasileiro onde mais se cometem violências contra as mulheres.
Contra os corpos publicitários e domesticados, os corpos desordeiros que não respeitam qualquer padrão de beleza previamente estabelecido.

Contra o bom comportamento do cidadão exemplar, os corpos que provocam, que chamam a atenção, pois não esperávamos vê-los ali, no meio da rua, dando novo ar e novas cores à cidade, arco-iris em dia de céu aberto.

Contra a força-bruta dos espancadores e estupradores, a força leve e móvel dos corpos que protestam enquanto se alegram e vice-versa.
Contra a intolerância masculina, laica ou religiosa, familiar ou anônima, a beleza dos corpos nus que param o trânsito e incomodam os conservadores de plantão. Enquanto os irritados buzinam freneticamente, as vadias exibem seus cartazes e sorriem na manhã de sábado: "Lugar de mulher é onde ela quiser".

Contra a pasmaceira da opinião pública, corpos de homens e mulheres que desconcertam os bem-pensantes, os mal-pensantes e os 'bons' militantes das políticas de minorias, que em geral não dão as caras por ali. Devem pensar: "não fomos nós que concebemos e organizamos o movimento, então ele deve ser politicamente incorreto. Pra não dizer que ele é  politicamente arriscado, pode chocar a opinião pública, ai ai ai...."

Os corpos nus das vadias se organizam autonomamente, conduzem o movimento  das páginas das redes sociais virtuais para as ruas da cidade e são então seguidos de perto por PSOL e PSTU, a despeito de muitos participantes pensarem que nenhum partido os representa.  
A Marcha das Vadias exige a implementação de ações políticas relativamente simples, mas que parecem inaceitáveis para a pequena política partidária machista: direito à igualdade entre homens e mulheres em todas as dimensões da vida; criminalização da discriminação e de todas as formas de violência de gênero e contra a orientação sexual; liberdade para abortar no sistema de saúde público; políticas de minorias que garantam a todxs a liberdade de ir e vir vestidx como quiserem, com quem quiserem, sem serem molestadxs ou agredidxs. Respeito à diferença, sempre. Será tão difícil de entender? Será tão difícil de implementar tais demandas? Parece que sim. Por isso a luta é contínua, noite e dia, faça chuva ou sol, frio ou calor.
A Marcha das Vadias dá voz àquelxs que a política institucional simplesmente ignora, deixando-xs expostxs à repulsa e à agressão.
Vadias e vadios resignificam a linguagem e os preconceitos ordinários. "Meu cu é meu!" Tautologia que ainda se faz necessário reiterar.
Vadia, vadiar, vadiagem, viadagem...viagem de corpos que carnavalizam e re-politizam a rua, o sexo, a moda, o amor, os bons costumes.
Para alguns, mera desordem passageira; para outros, perda de tempo de quem tem tempo a perder, "bando de filhinhos e filhinhas de papai alvoroçando o espaço público de maneira irresponsável..." Há também os que sentem tremer os pilares de seu mundo medíocre e reagem com mais violência. Pior para todos eles. Pois é por aí mesmo que segue e seguirá a micropolítica neste século 21, politizando corpos e espaços que antes permaneciam silenciosos ou apolíticos. 
A Marcha das Vadias manifesta sua força pela disseminação de imagens e linguagens que falam mais alto e mais claro que mil palavras e discursos bem-comportados. O movimento encarna a força simbólica da perturbação da ordem, desorganizando ideias e produzindo efeitos duradouros de contaminação, por meio da perfuração da cútis patriarcal. Piercing político.
A Marcha das Vadias luta por um mundo mais alegre e igualitário, um mundo menos violento. E você, de que lado você está?